“Da impureza como categoria política” – Parte II: Eis o monstro

[Parte I]

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“É uma convicção minha a de que talvez algumas doenças percebidas como doenças que destroem uma máquina em bom funcionamento, na verdade transformam essa máquina em uma máquina que faz outra coisa, e nós é que temos de descobrir o que essa máquina passa a fazer agora. Ao invés de termos uma máquina defeituosa, o que temos é com uma máquina bastante funcional que apenas serve a um propósito diferente.”

David Cronenberg

Mortos que matam (The Last Man on Earth), filme B ítalo-americano de 1964 codirigido por dois cineastas obscuros, Ubaldo Ragona e Sidney Salkow, e estrelado por Vincent Price, possui um estranho antecessor, nada menos que O eclipse (L’eclisse, 1962) de Michelangelo Antonioni. Ambos tratam da ruína de um mundo, do mesmo mundo, literalmente: foram filmados na EUR (Esposizione Universale Romana), o célebre subúrbio inacabado concebido por Mussolini nos anos de 1930 como um monumento ao renascimento da Itália sob o fascismo. A notável sensibilidade de Antonioni para a arquitetura conferiu a tal cenário preponderância, pois nele as formas de um urbanismo abstrato não só expressam como condicionam relações humanas de antemão exauridas de experiência articulada ou significante e, por fim, conduzem à brutal subtração dos protagonistas (Monica Vitti desliza para um fora de campo instável, que não mais pode restituir sua presença ao quadro – resta-lhe a ausência); é quando a narrativa se dissolve na sequência final de O eclipse, nos planos pétreos, geométricos, de paisagens urbanas que, quando não de todo inabitadas, se deixam tomar pelos raros transeuntes anônimos, personagens aleatórios esvaindo-se do quadro tão rápido quanto o adentram.

A mesma tônica do espaço destituído de presença – ou melhor, repleto da própria ausência humana, dos traços de uma vida pregressa extinta – é o ponto de partida de Mortos que matam. Uma série de planos estáticos introduz a cidade despovoada, os edifícios ermos e as ruas estagnadas em que avultam cadáveres. Robert Morgan (Price) sobreviveu – ao que tudo indica, sozinho – à epidemia da peste que transformou seus semelhantes em vampiros débeis, notívagos que temem o alho e os espelhos que lhes revelam o próprio semblante doentio; são fracos individualmente, mas fatais quando atacam, desordenadamente, em massa (mais próximos dos zumbis de Romero que do poderoso conde de Stoker). Derradeiro bastião dos homens, imune à praga, Morgan incumbiu a si mesmo o dever de buscar e exterminar sistematicamente tantos desses monstros infectos quantos lhes estiverem ao alcance, limpar no que for possível a cidade dessas encarnações impuras.

Até seu terço final, a narrativa de Mortos que matam reproduz algo similar ao modelo de horror proposto por Carroll: Morgan é apresentado como personagem que exemplifica nossa repulsa aos vampiros. Entretanto, uma reviravolta impressionante começa a se delinear com a chegada de outra sobrevivente, Ruth (Franca Bettoia). Ela é membro de uma nova comunidade até aquele instante desconhecida por Morgan; seus integrantes são humanos infectados que, por meio do uso periódico de uma droga, conseguem inibir os sintomas mais graves da doença, embora não possam curá-la. O surgimento deste terceiro elemento, do coletivo dos impuros, daqueles que não são nem humanos plenamente “saudáveis” nem monstros, reconfigura os critérios valorativos até então estabelecidos e tece novo um contexto discursivo e narrativo no qual Morgan é o monstro, tal como diz Ruth em dado momento:

“Você não pode se unir a nós. Você é um monstro. […] Você é uma lenda na cidade. Andando de dia, e não à noite, deixando como rastro de sua existência corpos sem sangue. Muitas das pessoas que vocês matou ainda estavam vivas! Muitas delas eram entes queridos das pessoas do meu grupo.”

Esse revés expõe a mentira do expediente que Morgan levava a cabo quase como uma missão histórica: ao tentar exterminar os monstros, inadvertidamente massacrou o que restava de humano nos infectos, seu projeto se perverteu numa forma de barbarismo apesar de suas melhores intenções. Morgan, o monstro lendário, será, finalmente, perseguido e executado pelo grupo de Ruth. É notável que a posição intersticial desse novo coletivo formado por homens e mulheres impuros como os vampiros, mas aptos para a organização racional e resolutamente humanos em seus sentimentos, funciona quase como uma figuração alegórica do dictum aristotélico: “um homem incapaz de integrar-se numa comunidade, ou que seja autossuficiente a ponto de não ter necessidade de fazê-lo, não é parte de uma cidade por ser um animal selvagem ou um deus” (Política, 1253a). Em Mortos que matam, a comunidade política dos impuros emerge como única alternativa ao insulamento “selvagem” da massa de mortos-vivos (incapazes de constituir qualquer tipo de coletividade organizada) bem como à autossuficiência de Morgan, a “divindade” monstruosa que os conecta a uma humanidade pura anterior e cujo sangue pode fornecer os anticorpos para uma cura. Sua execução sumária, no novo contexto referencial que toma de assalto o filme, carrega um potente significado político: a “Lenda” que ele representa deve ser extirpada. Esse desfecho francamente iluminista em seus pressupostos, que toma partido da desmitologização radical da sociedade, assevera uma espécie de caráter desmistificador da ação política – não há qualquer concessão à crença falsamente messiânica num salvador lendário cujo sacrifício restitui a pureza originária anterior à Queda cataclísmica, no caso, a praga que precipitou a humanidade na condição decaída de mortos-vivos.

As duas revisões cinematográficas de Mortos que matamA última esperança da Terra (The Omega Man, 1971; de Boris Sagal) e Eu sou a lenda (I am Legend, 2007; de Francis Lawrence) – convergem precisamente na recusa dessa ousada reviravolta política que encerra também o romance de Richard Matheson que as inspirou. Em ambas as refilmagens, o protagonista – agora chamado Neville como no livro – é uma Lenda no sentido inverso àquele do original, não por ser o mito monstruoso que deve ser suplantado em benefício de uma sociedade nova, mas porque representa o vínculo com civilização anterior à catástrofe, sua morte assume um significado mítico fundacional que restaura a ordem social (o status quo ante) e expurga a praga; quanto aos infectos, não passam de monstros sem qualquer habilidade de organização. É evidente, portanto, que a adoção de um esquematismo mais convencional, facilmente redutível ao modelo de Carroll, acarreta a simplificação das nuances políticas e discursivas que o elemento de impureza próprio ao horror deveria suscitar – como resultado, as refilmagens acabam por não mais que reiterar um velho topos narrativo e ideológico.

Um detalhe importante que não pode passar sem comentário é a maneira como a comunidade dos impuros é representada em Mortos que matam: apresentados como um coletivo altamente disciplinado com homens armados vestidos de preto e calçando coturnos, remetem claramente à milícia dos Camisas Negras do fascismo. É uma escolha no mínimo curiosa, visto que tal referência parece contraditória do ponto de vista ideológico (aos impuros não interessa restaurar a ordem de um ethos nacional ou mesmo civilizacional, porque recusam ancorar sua sociedade num mito fundador que os conecte a uma matriz pura e essencial de qualquer tipo – do contrário fariam um pacto com Morgan, cuja imunidade à praga que corrompeu a humanidade o transformaria no líder ideal de um tal projeto politicamente essencialista como o fascismo). Esse paradoxo nos leva não só a recusar uma leitura fácil como também a tentar uma espécie de contraleitura: e se – seguindo aqui uma hipótese já aventada por Fredric Jameson – especularmos que a figuração distópica protofascista dessa comunidade dá testemunho antes da nossa própria inaptidão para imaginar uma sociedade radicalmente distinta e, até mesmo, utópica? Tal remissão paradoxal à imagem deveras familiar do fascismo funcionaria, se assim a compreendermos, mais como um enxerto ilustrativo, como uma hipótese ad hoc narrativa, que tenta resolver o impasse discursivo de representar uma forma de vida e de organização social inconcebíveis nos termos das categorias políticas disponíveis a nós. A crítica politicamente orientada tem como uma de suas funções articular tais lacunas ficcionais (e discursivas) que revelam algo sobre os limites reais que o fechamento ideológico de nossas concepções em geral impõem à imaginação artística em particular. Tem por função, enfim, apontar que o sacrifício ao final de Mortos que matam não é um gesto de purificação da comunidade, não é um retorno ao passado imaculado, não é uma demonstração de violência comunitária sádica, nem mesmo é o triunfo da vontade do povo que se nutre da ilusão que essencializa seu ethos; é, ao contrário, a promessa do que para nós permanece (ainda) uma inimaginável utopia impura.

Christofer Pallú e Fernando Costa

[Parte III]