Apesar de um início brilhante e mesmo com promessas revolucionárias na forma de filmes como Wolfram, a Saliva do Lobo, Os Mercenários e Filme Socialismo, a produção cinematográfica da última década em seu conjunto se encerra num estado lamentável no mundo todo. O cinema comercial suprimido em meio a trustes corporativos e campanhas publicitárias, os festivais foram dominados pelos modismos contemporâneos e pela corrupção de críticos e curadores; por fim, no cinema de gênero, a alienação de seus próprios cânones resultou no revisionismo e na nostalgia mais ignorantes que já se viram na história do meio.
Algo que difere profundamente os primeiros decênios dos anos 2000 das décadas anteriores foi a perda de uma positiva mentalidade de “linha de produção” independente em que se deram inúmeros gêneros icônicos (da comédia romântica ao thriller erótico). Ruíram os filmes pequenos e médios realizados por estúdios especializados dessas linhas, esmagados pelas megaproduções derivadas de um lado e pela concentração sem precedentes do circuito dito de arte a um punhado de favorecidos seguidores. Os sobreviventes do colapso se viram forçados a uma dura transição: astros noventistas foram para o vídeo nos anos 2000 ou para a figuração de luxo nas baixarias comerciais ou festivaleiras de subcineastas (dos flertes de Stallone aos casos mais extremos de Van Damme, passando pelo estrelato decadente de gente como Sharon Stone, Nicolas Cage, Antonio Banderas, os irmãos Baldwin, Linda Fiorentino, Bruce Willis, entre vários outros).
O que o cinema ganhou de 2000 pra cá? Vergonha na cara, essa é a catástrofe!
E os cineastas, embora derrotados, não morreram: perseveram numa dedicada reação ao estado das coisas. São, em geral, realizadores de idade avançada que compõem o grosso das listas de melhores filmes do período: Clint Eastwood, Jean-Luc Godard, Abel Ferrara, Sylvester Stallone, Jean Claude Brisseau, Tobe Hooper, Júlio Bressane, Ken Loach e alguns outros que, entre vivos e mortos, formam uma vibrante tradição dos veteranos que persiste contra todas as tentativas de críticos e agentes da cultura de impor a primazia dos critérios contemporâneos a tudo que é possível conceber em matéria de filmes. Junto a eles, há um número menor, porém não desprezível, de companheiros de guerra um pouco mais jovens, sem unidade geracional, jogados à própria sorte e francamente marginalizados pela indústria. Este grupo incrivelmente heterogêneo inclui Na Hong-jin, Joana Torgal, Rodolfo Pimenta, e M. Night Shyamalan, além de seus irmãos mais velhos: Pedro Costa, Leos Carax, Johnnie To, Eugène Green, Rob Zombie e um punhado de outros membros de uma evanescente geração intermediária.
O fato de que esse isolamento geracional quase matou qualquer chance de continuidade entre os veteranos e os aspirantes torna ainda mais extraordinária a existência de jovens cineastas dispostos a enfrentar o status quo. Esta seleção existe precisamente para nos lembrar de que tal continuidade dos insurgentes e dos derrotados do passado e do futuro não é somente possível, mas nossa maior esperança de redimir a arte do cinematógrafo.
Todos os filmes destes realizadores tendem para uma linha e têm um espírito comum que poderia ser resumido simplesmente em anacronismo. Talvez inconscientemente estes filmes tenham abandonado plenamente a obsessão pelo contemporâneo, pelo que é mundano e urgente. Obsessão que foi concentrada em matéria perene e austera. São filmes de temas grandes, com personagens grandes, mas sem a pompa oficial da relevância. É uma grandeza espartana: enxuta, rigorosa e despojada.
Filmes perdidos no tempo, sobre estar completamente perdido e alienado do seu tempo, abordando o próprio anacronismo, a disfuncionalidade dos seus personagens: Os Mercenários, Djinn, O Lamento, A Parte dos Anjos, Le Masque de la Mèduse, Educação Sentimental, além de todos os filmes extraordinários do Clintão, quem mais consistentemente realizou obras-primas nesta década.
Júlio Bressane talvez nos dê o melhor exemplo: ao realizar o maior filme brasileiro desta década, recusou filmar o Brasil contemporâneo, pois não há Brasil para ser filmado. Já afirmou Guilherme de Almeida Prado: “É possível fazer filmes sem dinheiro, é impossível fazer filmes sem um país”. Educação Sentimental trata das coisas antigas, num espaço abstrato e remoto, muito longe do ouro e das cartilhas políticas.
O único que não traz o anacronismo frontalmente como tema é o grande filme utópico da nossa lista: Wolfram, a Saliva do Lobo, cinema sublime sobre nossos tempos e, à sua maneira, avesso a qualquer rotulagem temporal. A utopia já é uma proposta anacrônica. Ao contrário da linha geral de urgência, Wolfram, que é um filme atual, é tão atual quanto impensável a sua proposta mesma. O seu tempo, as suas estruturas, as diversas relações de trabalhos que compõem essa sociedade só podem ser totalizadas no próprio filme.
Do outro lado do mundo, a modernidade é assassinada em Djinn: a modernidade de um projeto de civilização e a modernidade de um cinema que foi sequestrado e soterrado em deserto árabe. A utopia colapsa sob o peso do seu passado e das suas tragédias particulares, pois elas contrapõem o universalismo falso do novo edifício, da nova cidade sobre uma antiga vila em ruínas. A plena compreensão dos mitos, da história, das relações de trabalho e das relações familiares dinamitam as estruturas do futuro. Como Tobe Hooper já havia ensaiado em seus filmes anteriores, especialmente Invasores de Marte: Djinn é o pesadelo de estar acordado, conforme o progresso. O pesadelo dos progressistas e dos reacionários. Não é possível escapar da própria origem ou do que nos cerca. É o sonho de uma outra vida, uma perversão do que sempre esteve ali, e os personagens são forçados a viver com isso eternamente. A canção de ninar não faz a criança adormecer, a chama de volta às ruínas. As estruturas e os edifícios estão em pé para quem os conhece e quiser vê-los. “Se você não sobrevive ao amanhecer… Não sobrevive.” Termina ao amanhecer. No deserto, tudo está morto e imóvel. A luz natural engole a elétrica e a canção de ninar ecoa como um lamento.
Tamanha subversão não veio sem preço: Djinn foi tirado de Tobe Hooper; seu corte foi impedido de circular mesmo em cópias restritas (como é de praxe na distribuição) e uma nova versão foi deixada aos auspícios de produtores insatisfeitos com a independência criativa e política do realizador americano. O caso pouco repercutiu na indústria; protesto nenhum foi feito em defesa do diretor ou contra o silenciamento que sofreu. Entre as distorções mais bizarras impostas pelos produtores ou pelo governo ao filme em seu corte para o cinema (ou para o vídeo, no ocidente) está a supressão completa da atividade econômica que sustenta a vila destruída e que hoje serve de mera decoração a nova sociedade que estão construindo, como um monumento obscurantista. Não foram cenas que caíram, mas pequenos planos ou detalhes que surgem sutilmente na extensão dos que foram mantidos pela montagem traidora, que davam toda a dimensão trágica e crepuscular para as pessoas e os espaços que Hooper pode filmar nos seus últimos anos.
Os Mercenários é outro caso estranho, outro caso de um lançamento equivocado que minou parcialmente o que tinha de melhor. É o último rebento da linhagem Cannon Films, que muito além de ser responsável pela formação dos seus astros, formou seus produtores, quase uma resistência final em Hollywood por um cinema popular e independente. Foi o grande sucesso da Nu Image, que largou de fazer cinema logo após, tomando como exemplos as sequências da própria franquia. Sem rodeios, Os Mercenários encarna todas as virtudes de que falamos: é rigoroso, enxuto, despojado, violento, trágico e absolutamente viripotente, concentrado na matéria mais importante: o homem entre os homens. Muito mais importante para Stallone do que fazer cinema autoral, é fazer um cinema de ator. Do drama, da ação, da emoção e do espetáculo.
A situação atual é tal como falou o próprio Sly quando da filmagem de Os Mercenários: “Você poderia explodir o país deles inteiro e eles ainda iriam dizer: ‘Obrigado, aqui está, leve um macaco para casa!’” O paradoxo desta década que começa incendiária com Os Mercenários é tão absurdo que ela parece não ter começado. Em meio à estéril lassidão, olhamos para o cinema hoje, especialmente para o que é produzido em terra brasileira e rezamos para que algo exploda. Muitos ainda vivem dos restos de décadas passadas, que já davam sinais de exaustão e falta de espaço para os veteranos de guerra. Ainda assim, em meio à covardia generalizada dos sistemas de produção e, principalmente, de distribuição, vários desses filmes memoráveis, pequenos atentados ao status quo, foram sabotados no instante em que se percebeu seu desalinhamento com os aparelhos culturais. Mais ainda, esses filmes foram muito mal exibidos (alguns sequer o foram), mal divulgados e vítimas do jornalismo serviçal mais rasteiro. Em suma, foram escanteados.
Christofer Pallu
Fernando Costa
Os melhores filmes da década segundo os colaboradores e camaradas do Cineclube Soberano:
01. Wolfram, a Saliva do Lobo (Joana Torgal e Rodolfo Pimenta)
02. Djinn (Tobe Hooper)*
03. Os Mercenários (Sylvester Stallone)*
04. Don’t Go Breaking My Heart (Johnnie To)
05. Cavalo Dinheiro (Pedro Costa)
06. A Garota de Lugar Nenhum (Jean-Claude Brisseau)
06. Holy Motors (Leos Carax)
08. Filme Socialismo (Jean-Luc Godard)
09. Educação Sentimental (Júlio Bressane)
10. A Visita (M. Night Shyamalan)
10. Adeus à Linguagem (Jean-Luc Godard)
12. Bem-Vindo a Nova York (Abel Ferrara)
13. Sully (Clint Eastwood)
14. A Parte dos Anjos (Ken Loach)
15. O Lamento (Na Hong-jin)
*Exclusivamente no corte do diretor.
Diretores:
01. Joana Torgal e Rodolfo Pimenta
02. Jean-Luc Godard
03. M. Night Shyamalan
04. Clint Eastwood
05. Tobe Hooper
06. Sylvester Stallone
07. Johnnie To
07. Ken Loach
09. Abel Ferrara
09. Pedro Costa
11. Jean-Claude Brisseau
11. Leos Carax
13. Júlio Bressane
14. Rob Zombie
15. Eugène Green
Listas individuais:
Andrew Olejnik:
01. Soldado Universal – Juízo Final (John Hyams)
02. ACAB – All Cops Are Bastards (Stefano Sollima)
03. Sniper Americano (Clint Eastwood)
04. Resident Evil – Retribuição (Paul Anderson)
05. As Senhoras de Salem (Rob Zombie)
06. Roma Morte (Asilo Febril)
Bruno Andrade:
01. Wolfram, a Saliva do Lobo (Joana Torgal e Rodolfo Pimenta)
02. Já visto, jamais visto (Andrea Tonacci)
03. A Garota de Lugar Nenhum (Jean-Claude Brisseau)
04. Adeus à Linguagem (Jean-Luc Godard)
05. Holy Motors (Leos Carax)
06. O estranho caso de Angélica (Manoel de Oliveira)
Bruno Kondlatsch Reddin:
01. Holy Motors (Leos Carax)
02. Cavalo Dinheiro (Pedro Costa)
03. Wolfram, a Saliva do Lobo (Joana Torgal e Rodolfo Pimenta)
04. On the Beach at Night Alone (Hong Sang-soo)
05. Filme Socialismo (Jean-Luc Godard)
06. Don’t Go Breaking my Heart (Johnnie To)
07. A Garota de Lugar Nenhum (Jean-Claude Brisseau)
08. Everybody Wants Some (Richard Linklater)
09. Seventh Code (Kiyoshi Kurosawa)
10. Easy Rider (James Benning)
11. Sully (Clint Eastwood)
12. Fragmentado (M. Night Shyamalan)
13. Diálogo de Sombras (Jean-Marie Straub)
14. A Cidade Perdida de Z (James Gray)
15. Alive in France (Abel Ferrara)
Cauby Monteiro:
01. O Conto da Princesa Kaguya (Isao Takahata)
02. Caminho para o Nada (Monte Hellman)
03. Adeus à Linguagem (Jean-Luc Godard)
04. Cavalo Dinheiro (Pedro Costa)
05. A Garota de Lugar Nenhum (Jean-Claude Brisseau)
06. Educação Sentimental (Júlio Bressane)
07. A Cidade Perdida de Z (James Gray)
08. Certo Agora, Errado Antes (Hong Sang-soo)
09. Holy Motors (Leos Carax)
10. Sniper Americano (Clint Eastwood)
11. Cópia Fiel (Abbas Kiarostami)
12. Don’t Go Breaking My Heart (Johnnie To)
13. O Último Mestre do Ar (M. Night Shyamalan)
14. Toy Story 3 (Lee Unkrich)
15. Crianças Lobo (Mamoru Hosoda)
16. Romance à Francesa (Emmanuel Mouret)
17. Vidas ao Vento (Hayao Miyazaki)
18. Para o Outro Lado (Kiyoshi Kurosawa)
19. Mostre a Língua, Moça (Axelle Ropert)
20. Café Society (Woody Allen)
Christofer Pallu:
01. Djinn (Tobe Hooper)*
02. Os Mercenários (Sylvester Stallone)*
03. Wolfram, a Saliva do Lobo (Joana Torgal e Rodolfo Pimenta)
04. Bem-Vindo a Nova York (Abel Ferrara)
05. O Último Mestre do Ar (M. Night Shyamalan)
06. Don’t Go Breaking My Heart (Johnnie To)
07. Para o Outro Lado (Kiyoshi Kurosawa)
08. Sully (Clint Eastwood)
09. A Parte dos Anjos (Ken Loach)
10. Cavalo Dinheiro (Pedro Costa)
11. Alive in France (Abel Ferrara)
12. Filme Socialismo (Jean-Luc Godard)
13. Easy Rider (James Benning)
14. O Lamento (Na Hong-jin)
15. A Mula (Clint Eastwood)
16. Soldado (Stefano Sollima)
17. Educação Sentimental (Júlio Bressane)
18. Wild City (Ringo Lam)
19. 31 (Rob Zombie)
20. Le Masque de la Méduse (Jean Rollin)
*Exclusivamente no corte do diretor.
Eduardo Savella:
01. Filme Socialismo (Jean-Luc Godard)
02. Educação Sentimental (Júlio Bressane)
03. A Visita (M. Night Shyamalan)
04. Vidro (M. Night Shyamalan)
05. La Sapienza (Eugène Green)
06. Pasolini (Abel Ferrara)
07. Cavalo Dinheiro (Pedro Costa)
08. A Mula (Clint Eastwood)
09. Para o Outro Lado (Kiyoshi Kurosawa)
10. O Traidor (Marco Bellocchio)
11. O Inconsolável (Jean-Marie Straub)
12. Roma Morte (Asilo Febril)
13. Sully (Clint Eastwood)
14. A Parte dos Anjos (Ken Loach)
15. Crianças Lobo (Mamoru Hosoda)
16. Eu e Você (Bernardo Bertolucci)
17. Certas Mulheres (Kelly Reichardt)
18. Don’t Go Breaking My Heart (Johnnie To)
Fernando Costa:
01. Jimmy’s Hall (Ken Loach)
02. A Parte dos Anjos (Ken Loach)
03. Djinn (Tobe Hooper)*
04. Wolfram, a Saliva do Lobo (Joana Torgal e Rodolfo Pimenta)
05. Bem-Vindo a Nova York (Abel Ferrara)
06. Os Mercenários (Sylvester Stallone)*
07. Penance (Kiyoshi Kurosawa)
08. O Lamento (Na Hong-jin)
09. Últimas Conversas (Eduardo Coutinho)
10. A Visita (M. Night Shyamalan)
11. Sully (Clint Eastwood)
12. Soldado (Stefano Sollima)
13. A Walk Among the Tombstones (Scott Franck)
14. Educação Sentimental (Júlio Bressane)
*Exclusivamente no corte do diretor.
Fernando Iolla:
01. Os Mercenários (Sylvester Stallone)*
02. Djinn (Tobe Hooper)*
03. 31 (Rob Zombie)
04. Sully (Clint Eastwood)
05. A Visita (M. Night Shyamalan)
06. O Capiau Contra o Diabo (Fernando Iolla e Christofer Pallu)
07. Aliados (Robert Zemeckis)
08. Fragmentado (M. Night Shyamalan)
09. Sicario (Denis Villeneuve)
10. Sniper Americano (Clint Eastwood)
*Exclusivamente no corte do diretor.
Leonardo Otto:
01. Don’t Go Breaking My Heart (Johnnie To)
02. Faça-me Feliz (Emmanuel Mouret)
03. Como Fernando Pessoa Salvou Portugal + Le Fils de Joseph (Eugène Green)
04. O Lamento (Na Hong-jin)
05. Vôo (Robert Zemeckis)
06. Cop Car (Jon Watts)
Pedro Favaro:
01. Meu Filho, Olha o Que Fizeste! (Werner Herzog)
02. A Caverna dos Sonhos Esquecidos (Werner Herzog)
03. Don’t Go Breaking My Heart (Johnnie To)
04. Holy Motors (Leos Carax)
05. Era uma vez em Nova York (James Gray)
06. Cavalo Dinheiro (Pedro Costa)
07. Para o Outro Lado (Kiyoshi Kurosawa)
08. Certo Agora, Errado Antes (Hong Sang-soo)
09. Mia Madre (Nanni Moretti)
10. João Benárd da Costa: Outros Amarão as Coisas que Amei (Manuel Mozos)
11. Romance à Francesa (Emmanuel Mouret)
12. Everybody Wants Some (Richard Linklater)
13. Sully (Clint Eastwood)
14. Alive in France (Abel Ferrara)
15. Antes que Tudo Desapareça (Kiyoshi Kurosawa)
16. Vidro (M. Night Shyamalan)
Por ordem de lançamento.