“Brasília 18%”, de Nelson Pereira dos Santos

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Brasília observada do céu, a imagem de um fantasma dirige um médico legista ao assédio, um inconveniente na chegada ao terreno da cidade. Olavo Bilac, o doutor, vem para entregar um laudo afirmando a identidade de um cadáver, Eugênia Câmara, jovem desaparecida depois de se envolver num escândalo com senadores e assessores parlamentares. Porém, “meu trabalho não é político”. O doutor, que dará uma identidade aos restos mortais, também realizou a autópsia de sua esposa, o fantasma. Toca a sinfonia da metrópole, Brasília, paisagem artificial, monumento ao projeto positivista. As estruturas ambíguas e o terreno idílico da capital primitiva, o Rio de Janeiro de Como era gostoso o meu Francês (1971), são tomadas pelo concreto e pelas estruturas palpáveis, evidentes e brutais. Um cineasta notório por filmar espaços desérticos vai à capital federal.

O espaço delimita a ação do homem, nos filmes de Nelson Pereira dos Santos, enfaticamente. O destino é condicionado por ele, os conflitos primários que movimentam suas narrativas partem do deslocamento e da alienação do território. Uma extraordinária compreensão do espaço é o que sugere a história e o poder, uma ordem e suas mutações no tempo. Os protagonistas, em trânsito, frequentemente perdidos, se atiram ou são atirados aos meios enigmáticos. A tomada de consciência só parece possível com o abandono de sua agência nestes meios. Ele retorna, ou segue perdido.

De Los Angeles para o IML da capital, transitando no Omega preto. “Aqui em Brasília é assim… A maioria dos assassinatos ocorrem quando ainda chove e a cidade fica toda verde. Os corpos são jogados, então, lá no meio do cerrado. Aí, quando chega agosto, a umidade do ar cai e a vegetação diminui, aí, os corpos começam a aparecer em tudo quanto é canto”. Nada permanece enterrado para sempre.

Assim como as estruturas do poder e seus alicerces ocultos, as personalidades também parecem circunstanciais. Se há um objetivo, um movimento propositado, é a fuga, a busca de um outro espaço que não pode ser vislumbrado, que ofereça meios para a dignidade. Esse outro espaço, em Vidas Secas (1963), parece ser vislumbrado na linha do horizonte velada, na igualdade do céu e da terra escassa. Aqui, nunca.

Os homens, seus protagonistas, irresponsáveis ou meramente reativos. Fabiano, El Justicero, Boca de Ouro, Alfredo, o Francês, Gabriel, Graciliano Ramos… Olavo Bilac. Em Boca de Ouro (1963), o poder, a estrutura social da vila e o presumido caráter do gangster carioca são reformulados pelos relatos de sua vida, partindo de uma só fonte.

O sentido do que fazem os personagens reativos se dá no ritual, nos mitos, na história, na herança. Em Como era gostoso o meu Francês (1971), nos textos de diversas épocas, de diversos autores, na dialética do fantástico com o concreto, do que está e do que foi, através de relatos. A paisagem brasiliense foi construída pelo homem, moldada aos seus interesses e nela todos têm acesso imediato ao seu reflexo e é direcionado ao reflexo o controle dos que habitam a cidade.

Todos conhecem detalhes do esquema que rege o caso, do sistema de corrupção, que decide sobre a vida e a morte, mas ninguém, nem mesmo o senador, vilão, aparenta ter comando das ações criminosas, agência verdadeira. Enfim, ele assume apenas mais um papel no drama judiciário, como seus comandados. O sistema é autônomo, os homens, não. Nos trópicos, ninguém raciocina.

O monumento à razão, um monumento à tragédia moderna. “Tá se ambientando aqui em Brasília? É parecido com Los Angeles, de certa maneira…”

Todo o esquema de corrupção, fora dos laudos, é testemunhado em trânsito, através do retrovisor, por mais um homem cumprindo o seu dever. Nada político.

Vídeos da dália negra, o fantasma da esposa e o corpo da prostituta do coração de ouro, aparições de mulheres e tipos distintos que se intercalam e são confundidos. A política como femme fatale, distante, misteriosa, amoral, de falsidade escandalosa. A confusão da experiência e o refúgio num outro espaço, de novo, apenas sugerido.

A vítima busca acabar seus estudos sobre “a dependência econômica brasileira e suas questões sociais” na fuga do país. Outra na imagem de uma pessoa, no delírio e nos mitos. Não é uma denúncia, não é realismo. Mais um filmezinho brasileiro que não vai dar em nada.

O corpo permanece sem identidade. A sinfonia da metrópole segue. O diabo sussurra as palavras da denúncia no ouvido do senador. A femme fatale sorri para o herói, que corresponde. Todo mundo é capanga do capeta. O suspense acaba no laudo sendo assinado, não com a resolução do crime e do mistério, com alguma revelação sobre o crime central para o enredo e para a imprensa dentro do filme, pois tudo foi direcionado aos possíveis impactos dessas revelações. “Ela morreu caindo de paraquedas, doutor?” – Direto da TV Candango. Ao término da farsa noir povoada por personagens da literatura brasileira, a cartela anuncia, sobre o pôr-do-sol brasiliense: “Está é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes ou fatos reais é mera coincidência.”

Christofer Pallu

Três filmes de Paula Negri com Marina Cananda

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I. Maria José, 2015.

Primeira direção da Paulinha Negri. Produção de estudantes descobrindo seus ofícios.

Em Maria José se esboçava a tensão cabal de atração e repulsão dentro dos planos, um movimento impreciso em busca de “algo” que não se encontra, algo que pode estar presente e é sugerido, mas nunca sentido. Algo chama os olhos da menina Maria, recônditos como o alvo de sua confusa busca, forçando-na a preencher um espaço e esvaziá-lo bruscamente. Algo menos vago seduz José, incapaz de lidar com a impérvia distância da menina que busca.

O trabalho ainda é equivoco, o estilo rudimentar, a arte viciosa… Enfim, um aprendizado. Ideias ousadas diluem-se em técnicas que não escapam dum possível condicionamento do meio estudantil no qual está inserido.

A tensão mencionada também transpira entre a encenação rígida e a moleza do casal de atores, entre suas faces e a luz que não encontra o trêmulo furor erótico que fortuitamente irrompe nos silêncios. Silêncios muito mais profundos que aqueles de seus vis contemporâneos ao esquivarem dos diálogos sinceros, pois é, afinal, um filme de desencontro.

No reconforto de um beijo no pescoço seguido de um abraço a câmera parece relaxar, para então retornar abruptamente ao vazio num sorriso não correspondido, numa gravidade súbita e assustadora, numa distância redescoberta quando não há mais lugar para ela. Por este momento, o olhar perdido de José é sustentado.

E o filme não é apenas um momento, não é a busca de um efeito pulando as árduas etapas da construção. Porém, as minúcias dessa construção serão descobertas depois. Uma consequência natural da entrega às árduas etapas anteriores.

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II. Flores, 2015.

A coadjuvante Marina vira a estrela, força motora do cinema. Uma força natural, indomável, que a câmera persegue, observa, enquadra, procura um controle do qual desiste quando descobre na própria jornada seu sentido de ser. Finalmente, uma produção livre. Pois a descoberta é o próprio sentido do ofício.

Ouvi um pastor dizer um dia: “Tudo do que preciso eu já tenho à mão!” E Flores é um desses raros filmes que desbravam com as mãos, vê com elas, cria com elas. Manifesta e manipula a matéria bruta. Depois pode digeri-la, num carreiro rumo a intoxicação romântica. São flores de formas variadas que num ponto, digitalmente sangrando, viram cor pura, abstrata e aberrante, que vão retomando seu volume, sua textura e seu corpo no contato com a estrela, que em sua flana se aliena da cidade, posta num espaço fechado onde consome o que extraiu dos muros e calçadas, dum ambiente que ela relega à margem, mas segue existindo como um lasso eco na trilha sonora.

O espaço fechado, onde a Marina finalmente descansa, é encontrado e é criado, é fruto de uma busca e de uma escolha, da abertura total unida a um tácito rigor. Simultaneamente próxima e estranha à realidade que a cerca, o envolvimento com a menina no segundo filme não distancia, liberta.

As flores transfiguram, a vizinhança transfigura, Marina transfigura… Ela não é mais parte dum retrato da juventude universitária, uma personagem, uma atriz, pois agora pisa no plano misterioso que está muito além da arena, numa trilha muito parecida com a que Morrissey e Dallessandro percorreram de Flesh em diante. É uma força que regressa à ficção e transforma outros planos no último filme.

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III. Encontro, 2016.

Dos três herméticos títulos, o melhor. Das premissas de uma linha, a mais direta, reduzida a uma palavra. Produção de bando, de amigos abertos à experiência e aos desafios do real, pois pretende mergulhar em mistérios latentes, em espaços reais, quase num tempo real.

Flores, contraponto austero à clausura composicional de Maria José. Se dissipam as linhas predefinidas, os sistemas sufocantes e com eles todas as farsas que a indústria aidsvisual confunde com construção. O desprendimento que foi laboriosamente aprendido inflama o coração da produção, cria um pulso natural, um centro de gravidade que impede as arbitrariedades. O plano e o acidente trazido pelo destino convergem harmonicamente. Nesta modesta refilmagem de Notting Hill, redescobrimos a fluidez que o cinemão abandonou, como abandonou Hugh Grant e Julia Roberts, entre diversos nomes duma arte que a grande indústria abjura e talvez até esqueça que um dia existiu.

Paulinha sabia que era preciso ir muito além dos silêncios aflitivos de Maria José, trair seu relaxamento afetado, e partindo dele, buscar o relaxamento verdadeiro, desbravar uma direção e uma tensão justa. Era preciso atravessar os olhares, prender-se à suas convergências, às suas debandadas, enfim, flanar a noite como o reativo herói João, um bundão de marca maior. Aqui, a força indomável desperta o entusiasmo num jovem preso a um meio fechado, um mundo mediado por vidros e telas, por imagens que seduzem mas não são concretas.

Fazemos o caminho inverso de Maria José, aquele filme de desencontro. No filme de encontro, a fleuma entra em choque com o desejo, a evasão é frustrada e os olhares quando cruzam, copulam. Na penumbra pontuada pelo brilho de olhos tímidos, clareia uma direção, a inquietude da aproximação, dum possível contato.

É uma agressão erótica à inércia de João, que recusa superar a acídia, correndo do desejo que o chama aos berros, da atração que ele resiste e dispersa, forçando uma fuga que o leva ao inferno, onde confronta o medo de se aproximar do outro. E João, pela primeira vez, nos deixa totalmente perdidos no escuro, mergulha nele, vomita seu encosto. Quando a noite o cospe de volta, livrando o herói do inferno, ele se vê sinucado e a tensão da distância é palpável. O mergulho violento na noite foi incitado por Ana e só ela pode provocar o despertar. É ela quem move o destino, comanda a madrugada, atrai a alma perdida.

Dali em diante, tudo poderia dar errado, aqueles caminhos nunca mais serem cruzados. Por um momento, numa bela sequência de perseguição, saímos do teen movie direto para o thriller, mas a musa outra vez aparece e nos atira às sombras, às incertezas, às amplas possibilidades dum teen movie, dum rito de passagem. Na cena derradeira, de maior confluência, do casal andando lado a lado, rumo ao desejo mútuo e manifesto, é ela quem dá o empurrão final. Entra New Order.

I feel fine and I feel good / I’m feeling like I never should / Whenever I get this way / I just don’t know what to say / Why can’t we be ourselves like we were yesterday

Christofer Pallu

Avatares da coisa maldita: notas sobre o cinema de Tobe Hooper

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I. Horror normalizado

A concepção básica de horror que perpassa todo o cinema de Tobe Hooper pode ser bem sintetizada num corte revelador de Pague Para Entrar, Reze Para Sair (The Funhouse, 1981): após fugir de casa para visitar, escondido, um proscrito parque de diversões itinerante, Joey se assusta ao ser atacado por um cão cujo bote é contido por uma cerca; um corte seco nos leva de volta à bilheteria do parque em que se lê em néon vibrante: Tickets. Nessa sequência simplíssima de dois planos, temos a suma do que Hooper imagina como a experiência fundadora do horror cinematográfico e os termos nos quais seus filmes lidarão com suas convenções narrativas – pode-se assim expressá-la: uma ameaça, se contida em limites claros que garantam sua fruição inconsequente, está pronta para o comércio. Uma das preocupações centrais de todo o cinema de Tobe Hooper reside no fato de que precisamente essa dinâmica que parece balizar o horror enquanto gênero é também a causa de sua própria degeneração no puro convencionalismo do filme de receita no qual o efeito do susto e da repulsa fáceis se divorcia do elemento subversivo, caótico e desagregador que deveria estar, desde o início, em seu firmamento. A consequência derradeira dessa “normalização” do horror é uma espécie de domesticidade decorativa que seus filmes tão bem retratam – Joey é a perfeita encarnação do fanboy, as imagens dos monstros clássicos da Universal que povoam seu quarto se por um lado ainda o fascinam, não mais o aterrorizam; no parque de diversões, um desajeitado funcionário com uma máscara da criatura de Frankenstein passa, despercebido, pelos jovens prestes a entrar na Casa dos Horrores. E se a primeira metade de Pague Para Entrar, Reze Para Sair funciona como um brilhante mosaico de atrações fílmicas que constantemente subvertem e restituem (em suma, jogam com) a relação entre algum elemento anômalo/ameaçador e a distância segura de seu consumo como “representação” artística, a segunda metade do filme será um mergulho bem mais radical na essência mesma do projeto hooperiano.

II. Lócus do horror

Quando os quatro adolescentes protagonistas de Pague Para Entrar, Reze Para Sair entram na Casa dos Horrores (a Funhouse do título original) é que Tobe Hooper, após jogar livremente com os princípios e convenções do cinema de gênero, nos apresenta de forma programática nada menos que sua declaração de princípios como cineasta. Para tanto, Hooper recorre a um dos motivos narrativos mais comuns tanto da literatura como do cinema de horror, a saber, a “casa terrível” que submete seus habitantes a uma espécie de ordem macabra e inumana. Trata-se de um tema que já o obcecava desde seu primeiro longa-metragem, Eggshells (1969), tendo sido central em seus filmes dos anos 1970, O Massacre da Serra Elétrica (The Texas Chainsaw Massacre, 1974), Devorado Vivo (Eaten Alive, 1977) e A Mansão Marsten (Salem’s Lot, 1979), mas que só se torna o fundamento plenamente consciente de um projeto cinematográfico em Pague Para Entrar. Aqui, mais do que um motivo, a Casa dos Horrores se torna o meio pelo qual o cineasta mobiliza os símbolos e ícones desgastados da tradição para lhes conferir novas funções, para desestabilizar tanto quanto possível o horror normalizado; a ordem monstruosa e incompreensível do espaço subterrâneo violado pela presença dos protagonistas tem não apenas implicações narrativas ou dramáticas, mas formais: é como se a própria textura do filme anterior instaurada pela complacência no jogo inconsequente das convenções fosse tragada pelo caos de um ambiente até então desconhecido. Talvez seja esse uso radicalmente disruptivo desse lócus do horror que cause a sensação incômoda em muitos espectadores de que os filmes de Hooper não “incoerentes”, de que em um dado momento todo o tecido narrativo estabelecido parece se desintegrar em uma série de ocorrências bizarramente excêntricas. Tomemos dois momentos de Pague para entrar em que a dinâmica da Casa dos Horrores não só opera, mas é articulada com a precisão de um tratado em forma de filme. O primeiro se dá na forma de um desmascaramento; num acesso de raiva, o filho de um dos donos do parque repentinamente arranca a máscara do monstro de Frankenstein que até então o havia encoberto, revelando, por baixo da criatura inofensiva – réplica barata do semblante canonizado por Boris Karloff –, um novo monstro. É curioso que Hooper repetirá o gesto de desmascaramento na reintrodução de seu próprio monstro canônico, Leatherface, em O Massacre da Serra Elétrica 2 (The Texas Chainsaw Massacre 2, 1986). E, tal como Leatherface, esse monstro revelado em Pague para entrar, não é nem de perto tão terrível ou mesmo tão ameaçador quanto o próprio ambiente que habita (nisso, há uma subversão dos códigos do slasher ao qual ambos os filmes são forçosamente assimilados) – ele é apenas uma entre as muitas peças disformes de um mecanismo anônimo cujo único propósito é perpetuar a si próprio às expensas mesmo de suas partes individuais. Talvez nada deixe tão evidente esse caráter autofágico que o clímax de Pague Para Entrar, Reze Para Sair; não apenas os adolescentes (à exceção da Final Girl) como também o Monstro e seu pai morrerão antes por efeito da própria configuração espacial da Casa do que por quaisquer atos individuais de violência. Os ícones deveras conhecidos e banalizados que povoavam a primeira metade do filme serão, finalmente, transfigurados pelo lugar maldito em um mecanismo caótico cuja imagem definitiva são as inumanas engrenagens que colocam em movimento os monstros de plástico e metal da Casa dos Horrores.

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III. Bilocações

Outra característica deve ser salientada nos espaços hooperianos. Em Poltergeist (1982), um dos cientistas encarregados de investigar os misteriosos acontecimentos numa residência se refere a um certo fenômeno de “bilocação” no qual um mesmo espaço abriga duas dimensões contraditórias, uma primeira exterior, cotidiana, normal, e outra, subterrânea, correspondente ao que chamei anteriormente de lócus do horror. Poltergeist, filme que dirigiu imediatamente após Pague Para Entrar, Reze Para Sair, é amplamente considerado uma obra bastarda de Steven Spielberg, proponente original do projeto, coautor do argumento e do roteiro além de produtor. Embora tenha trabalhado sob encomenda, inicialmente contratado para levar à tela o que Spielberg já havia concebido, Hooper tomou para si o projeto e impôs sua própria voz quase inteiramente através dos recursos de decupagem e encenação que estavam em seu controle. Se em seus filmes anteriores, Hooper vinha tentando transformar seus espaços de horror em universos plenamente realizados, em Poltergeist a própria natureza da produção não o permitiria materializar suas obsessões em imagens (um desafio conscientemente aceito pelo diretor); o roteiro requeria adesão a uma família “normal” que, à primeira vista, pouco correspondia às famílias horrendas de suas outras realizações. Não podendo realizar seu próprio universo, Hooper então o conduziu para o fora de campo, para um espaço ausente e distinto, mas concomitante ao espaço da vida suburbana que o filme retrata – em suma, recorreu à “bilocação”. O que torna Poltergeist um filme tão fascinante é justamente essa limitação consciente que permitiu a Hooper desenvolver essa dicotomia de espaços opostos coexistentes (um paradoxo que alimentará sua obra posterior). Tanto a encenação quanto um habilidoso uso do som diegético, a todo momento, tensionam esses dois mundos sem, contudo, chocá-los: um travelling revelará parcialmente espaços que recontextualizam ações e diálogos; uma porta entreaberta sugere sem evidenciar que algo terrível se oculta no quarto; e até uma simples fusão sobrepondo enquadramentos coincidentes de dois interiores nos mostra que até a mais acolhedora das casas suburbanas é um ambiente em si mesmo tão genérico e artificial quanto o parque de Pague Para Entrar, Reze Para Sair.

IV. A coisa maldita

Nos anos 1990, Hooper realizou dois filmes essenciais de seu inventário. No primeiro, Combustão Espontânea (Spontaneous Combustion, 1990), o protagonista, Sam (Brad Dourif), sente em seu próprio corpo as consequências de seu tempo; as irrupções incendiárias que gradualmente o degeneram física e moralmente surgem como resultado das experiências com radiação que construíram seu mundo – a ação do filme se desenrola sobre o pano de fundo de uma realidade alternativa em que o uso indiscriminado de energia nuclear se tornou uma prática corporativa perigosamente comum. O corpo autodestrutivo de Sam materializa dramaticamente o contexto que o gerou. O que Combustão Espontânea manifesta de maneira mais clara que qualquer outro filme de Hooper é seu interesse pela forma como personagens tornam-se invariavelmente uma função de seu ambiente, uma peça em um mecanismo inumano de terror. A casa de máquinas em Pague Para Entrar, a família unificada mediante uma moral esquizofrênica (mais do que a qualquer de seus membros individuais) em O Massacre, o “povo da tevê” de Poltergeist, a distópica sociedade da “era atômica” em Combustão Espontânea: são precisamente a essas instâncias fortemente contextuais que a atenção de Hooper se volta; seu interesse maior é num horror de espaços e estados de coisas, mais que de personagens ou monstros tomados em si mesmos. Sua outra obra-prima da década, Mangler: O Grito de Terror (The Mangler, 1995), tem como premissa uma trama maravilhosamente absurda envolvendo uma máquina de dobrar lençóis assassina, herdeira direta da Casa dos Horrores de Pague Para Entrar. Em um dado momento, quando a máquina atenta pela segunda vez contra a vida de uma funcionária da lavanderia, um dos personagens grita no fora de campo: “Shut that damn thing off!” (Desliguem essa coisa maldita!). Um termo tão genérico como “coisa maldita” cresce em dimensão quando pensamos que Hooper realizou uma livre adaptação para a televisão, em 2006, do conto de Ambrose Bierce que carrega precisamente esse título, The Damned Thing (A Coisa Maldita), que se centra numa criatura cuja própria natureza transcende a capacidade de percepção humana. Não consigo pensar em denominação melhor para definir essa maquinação sem rosto que, nos filmes de Hooper, são a causa primeira do horror; seus personagens monstruosos, anômalos ou simplesmente malignos tendem, antes de mais nada, a ser o produtos e as peças descartáveis desse mecanismo irrefreável; a Coisa Maldita é a maquinaria que move a Casa dos Horrores, e as figuras macabras que a habitam são as formas reconhecíveis, os avatares imperfeitos, de sua força maligna. Na galeria de tipos hooperianos, os velhos (cujas marcas de idade figuram geralmente acentuadas por uma maquiagem pesada e propositalmente artificial) costumam ser os personagens mais intimamente vinculados às intangíveis maquinações da Coisa Maldita – Vovô, o patriarca de O Massacre da Serra Elétrica é o objeto de idolatria da família e sua sobrevivência é o objetivo maior da “moral” que fundamenta o clã de canibais. Mas o velho hooperiano definitivo é com certeza Bill Gartley (Robert Englund) que, em Mangler: O Grito de Terror, estabelece um pacto com a máquina assassina em troca de uma imortalidade decrépita. Nada há nesse pacto que lembre nem de longe uma autêntica aspiração fáustica, apenas a mesquinha sobrevivência de um velho egoísta. Em Mangler: O Grito de Terror, a normalidade e seu duplo monstruoso por fim convergem no pacto mefistofélico com a Coisa Maldita, e esta não mais se resguarda num espaço subterrâneo oculto da mera vida, mas a engole e a consome – fora do pacto, há a submissão (o proletário vampirizado na lavanderia de Gartley) ou a impotência de uma alienação consciente e conformada (porque não de todo explorada) dos servidores médios do sistema (o policial tão bem personificado pela figura recurvada e melancólica de Ted Levine).

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V. O fim da juventude

Entre Eggshells e Mangler: O Grito de Terror, Hooper traduziu nos termos do próprio cinema o caminho de sua geração. O termo “tradução” deve ser ressaltado, porque o conteúdo da experiência geracional ampla que atravessa o conjunto de seus filmes realizados do final dos anos sessenta ao começo dos anos noventa não se expressa de forma aberta ou “realista”, e tampouco está velado em referências indiretas; algo mais complexo se dá: acontece que Hooper – tal como (de maneiras distintas, mas análogas) Carpenter, Romero e Craven, para citar alguns cineastas da mesma geração trabalhando a partir de uma tradição comum de cinema de horror – transfigura tal experiência ao incorporá-la à tessitura dramática e estilística de seus filmes e às exigências do gênero a que subscrevem. O que importa, assim, é que Hooper, à sua maneira, parece contar ao longo de vários filmes uma espécie de história conjectural da juventude que se vincula diretamente à história concreta de sua própria geração de baby-boomers. Eggshells olha com extrema proximidade para o crepúsculo da rebeldia alienada dos anos 1960, para o fim de uma forma de resistência juvenil cujo modelo fora a contracultura; os elementos de gênero que pululam ao longo do filme (da presença criptoembriônica que se aloja num porão à máquina que “traga” quatro hippies para expeli-los como fumaça) soam quase como autoparódia do ideário sob os quais os personagens tentaram, sem sucesso, viver. À desilusão seguem-se as desventuras da juventude blasé retratada em O Massacre da Serra Elétrica – dos já velhos ideais sobraram as páginas de astrologia, a liberalização do sexo é tamanho lugar-comum a essa altura que pouca práxis de fato subversiva pode ser feita dela; a realidade confronta esse ideário politicamente raquítico com uma crise do petróleo (a falta de gasolina os motiva a permanecer nas paragens isoladas em que encontrarão a morte) e a decadência material generalizada de um jamais tão próspero countryside. Mas foi no revival conservador dos anos oitenta, que essa geração veio a ser a contradição mesma de suas próprias aspirações juvenis, e pouca gente pareceu sequer se importar com o fracasso coletivo em realizar o que outrora se ansiou. Em Poltergeist, Hooper não precisa de mais que um travelling para expressar com exatidão e simplicidade assombrosas a magnitude do paradoxo geracional que veio à tona nesse período: em seu quarto, o jovem casal fala de amenidades suburbanas e fuma maconha; a câmera descreve um lento e constante movimento lateral de tal forma que vemos primeiro a mãe (JoBeth Williams) com um livro de Jung numa mão e um baseado na outra e, em seguida, o pai (Craig T. Nelson), lendo um livro sobre Ronald Reagan (porque não foi outra a geração que o elegeu). Trata-se de um dos planos mais extraordinários de toda a carreira de Hooper; o movimento sustido da câmera que atravessa a cama, ao nos levar de uma ponta a outra da contradição, tem um impacto revelatório para o espectador e, frente à força expressiva do travelling e do enquadramento, a austeridade quase mecânica com que o casal se comporta frente a essa antinomia já banalizada nos faz atentar para o fato fundamental de que a postura de ambos de ambos não é afinal menos incoerente que a esquizofrenia moral da família macabra de O Massacre da Serra Elétrica. Qual o destino dessa geração? Hooper não se esquiva de dar uma amarga resposta com Mangler: O Grito de Terror. Sherry (Vanessa Pike), a virginal Final Girl do filme, seguirá os passos do tio, o velho Bill Gartley, e firmará seu próprio pacto com a máquina assassina em troca da mera sobrevivência; o acordo, como fora o caso com todos os demais signatários, é selado por uma laceração física que ela ostenta em sua última aparição em tela. O destino é a conformidade pura e simples, o pacto mefistofélico com a Coisa Maldita, a velhice parasitária que consome a força e o trabalho dos que ainda tentam viver sem oprimir; em suma, o fim da juventude.

Fernando Costa

Macacos para o Sly

Filme Socialismo

Apesar de um início brilhante e mesmo com promessas revolucionárias na forma de filmes como Wolfram, a Saliva do Lobo, Os Mercenários e Filme Socialismo, a produção cinematográfica da última década em seu conjunto se encerra num estado lamentável no mundo todo. O cinema comercial suprimido em meio a trustes corporativos e campanhas publicitárias, os festivais foram dominados pelos modismos contemporâneos e pela corrupção  de críticos e curadores; por fim, no cinema de gênero, a alienação de seus próprios cânones resultou no revisionismo e na nostalgia mais ignorantes que já se viram na história do meio.

Algo que difere profundamente os primeiros decênios dos anos 2000 das décadas anteriores foi a perda de uma positiva mentalidade de “linha de produção” independente em que se deram inúmeros gêneros icônicos (da comédia romântica ao thriller erótico). Ruíram os filmes pequenos e médios realizados por estúdios especializados dessas linhas, esmagados pelas megaproduções derivadas de um lado e pela concentração sem precedentes do circuito dito de arte a um punhado de favorecidos seguidores. Os sobreviventes do colapso se viram forçados a uma dura transição: astros noventistas foram para o vídeo nos anos 2000 ou para a figuração de luxo nas baixarias comerciais ou festivaleiras de subcineastas (dos flertes de Stallone aos casos mais extremos de Van Damme, passando pelo estrelato decadente de gente como Sharon Stone, Nicolas Cage, Antonio Banderas, os irmãos Baldwin, Linda Fiorentino, Bruce Willis, entre vários outros).

O que o cinema ganhou de 2000 pra cá? Vergonha na cara, essa é a catástrofe!

E os cineastas, embora derrotados, não morreram: perseveram numa  dedicada reação ao estado das coisas. São, em geral, realizadores de idade avançada que compõem o grosso das listas de melhores filmes do período: Clint Eastwood, Jean-Luc Godard, Abel Ferrara, Sylvester Stallone, Jean Claude Brisseau, Tobe Hooper, Júlio Bressane, Ken Loach e alguns outros que, entre vivos e mortos, formam uma vibrante tradição dos veteranos que persiste contra todas as tentativas de críticos e agentes da cultura de impor a primazia dos critérios contemporâneos a tudo que é possível conceber em matéria de filmes. Junto a eles, há um número menor, porém não desprezível, de companheiros de guerra um pouco mais jovens, sem unidade geracional, jogados à própria sorte e francamente marginalizados pela indústria. Este grupo incrivelmente heterogêneo inclui Na Hong-jin, Joana Torgal, Rodolfo Pimenta, e M. Night Shyamalan, além de seus irmãos mais velhos: Pedro Costa, Leos Carax, Johnnie To, Eugène Green, Rob Zombie e um punhado de outros membros de uma evanescente geração intermediária.

O fato de que esse isolamento geracional quase matou qualquer chance de continuidade entre os veteranos e os aspirantes torna ainda mais extraordinária a existência de jovens cineastas dispostos a enfrentar o status quo. Esta seleção existe precisamente para nos lembrar de que tal continuidade dos insurgentes e dos derrotados do passado e do futuro não é somente possível, mas nossa maior esperança de redimir a arte do cinematógrafo.

Todos os filmes destes realizadores tendem para uma linha e têm um espírito comum que poderia ser resumido simplesmente em anacronismo. Talvez inconscientemente estes filmes tenham abandonado plenamente a obsessão pelo contemporâneo, pelo que é mundano e urgente. Obsessão que foi concentrada em matéria perene e austera. São filmes de temas grandes, com personagens grandes, mas sem a pompa oficial da relevância. É uma grandeza espartana: enxuta, rigorosa e despojada.

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Filmes perdidos no tempo, sobre estar completamente perdido e alienado do seu tempo, abordando o próprio anacronismo, a disfuncionalidade dos seus personagens: Os Mercenários, Djinn, O Lamento, A Parte dos Anjos, Le Masque de la Mèduse, Educação Sentimental, além de todos os filmes extraordinários do Clintão, quem mais consistentemente realizou obras-primas nesta década.

Júlio Bressane talvez nos dê o melhor exemplo: ao realizar o maior filme brasileiro desta década, recusou filmar o Brasil contemporâneo, pois não há Brasil para ser filmado. Já afirmou Guilherme de Almeida Prado: “É possível fazer filmes sem dinheiro, é impossível fazer filmes sem um país”. Educação Sentimental trata das coisas antigas, num espaço abstrato e remoto, muito longe do ouro e das cartilhas políticas.

O único que não traz o anacronismo frontalmente como tema é o grande filme utópico da nossa lista: Wolfram, a Saliva do Lobo, cinema sublime sobre nossos tempos e, à sua maneira, avesso a qualquer rotulagem temporal. A utopia já é uma proposta anacrônica. Ao contrário da linha geral de urgência, Wolfram, que é um filme atual, é tão atual quanto impensável a sua proposta mesma. O seu tempo, as suas estruturas, as diversas relações de trabalhos que compõem essa sociedade só podem ser totalizadas no próprio filme.

Djinn

Do outro lado do mundo, a modernidade é assassinada em Djinn: a modernidade de um projeto de civilização e a modernidade de um cinema que foi sequestrado e soterrado em deserto árabe. A utopia colapsa sob o peso do seu passado e das suas tragédias particulares, pois elas contrapõem o universalismo falso do novo edifício, da nova cidade sobre uma antiga vila em ruínas. A plena compreensão dos mitos, da história, das relações de trabalho e das relações familiares dinamitam as estruturas do futuro. Como Tobe Hooper já havia ensaiado em seus filmes anteriores, especialmente Invasores de Marte: Djinn é o pesadelo de estar acordado, conforme o progresso. O pesadelo dos progressistas e dos reacionários. Não é possível escapar da própria origem ou do que nos cerca. É o sonho de uma outra vida, uma perversão do que sempre esteve ali, e os personagens são forçados a viver com isso eternamente. A canção de ninar não faz a criança adormecer, a chama de volta às ruínas. As estruturas e os edifícios estão em pé para quem os conhece e quiser vê-los. “Se você não sobrevive ao amanhecer… Não sobrevive.” Termina ao amanhecer. No deserto, tudo está morto e imóvel. A luz natural engole a elétrica e a canção de ninar ecoa como um lamento.

Tamanha subversão não veio sem preço: Djinn foi tirado de Tobe Hooper; seu corte foi impedido de circular mesmo em cópias restritas (como é de praxe na distribuição) e uma nova versão foi deixada aos auspícios de produtores insatisfeitos com a independência criativa e política do realizador americano. O caso pouco repercutiu na indústria; protesto nenhum foi feito em defesa do diretor ou contra o silenciamento que sofreu. Entre as distorções mais bizarras impostas pelos produtores ou pelo governo ao filme em seu corte para o cinema (ou para o vídeo, no ocidente) está a supressão completa da atividade econômica que sustenta a vila destruída e que hoje serve de mera decoração a nova sociedade que estão construindo, como um monumento obscurantista. Não foram cenas que caíram, mas pequenos planos ou detalhes que surgem sutilmente na extensão dos que foram mantidos pela montagem traidora, que davam toda a dimensão trágica e crepuscular para as pessoas e os espaços que Hooper pode filmar nos seus últimos anos.

The Expendables

Os Mercenários é outro caso estranho, outro caso de um lançamento equivocado que minou parcialmente o que tinha de melhor. É o último rebento da linhagem Cannon Films, que muito além de ser responsável pela formação dos seus astros, formou seus produtores, quase uma resistência final em Hollywood por um cinema popular e independente. Foi o grande sucesso da Nu Image, que largou de fazer cinema logo após, tomando como exemplos as sequências da própria franquia. Sem rodeios, Os Mercenários encarna todas as virtudes de que falamos: é rigoroso, enxuto, despojado, violento, trágico e absolutamente viripotente, concentrado na matéria mais importante: o homem entre os homens. Muito mais importante para Stallone do que fazer cinema autoral, é fazer um cinema de ator. Do drama, da ação, da emoção e do espetáculo.

A situação atual é tal como falou o próprio Sly quando da filmagem de Os Mercenários: “Você poderia explodir o país deles inteiro e eles ainda iriam dizer: ‘Obrigado, aqui está, leve um macaco para casa!’” O paradoxo desta década que começa incendiária com Os Mercenários é tão absurdo que ela parece não ter começado. Em meio à estéril lassidão, olhamos para o cinema hoje, especialmente para o que é produzido em terra brasileira e rezamos para que algo exploda. Muitos ainda vivem dos restos de décadas passadas, que já davam sinais de exaustão e falta de espaço para os veteranos de guerra. Ainda assim, em meio à covardia generalizada dos sistemas de produção e, principalmente, de distribuição, vários desses filmes memoráveis, pequenos atentados ao status quo, foram sabotados no instante em que se percebeu seu desalinhamento com os aparelhos culturais. Mais ainda, esses filmes foram muito mal exibidos (alguns sequer o foram), mal divulgados e vítimas do jornalismo serviçal mais rasteiro. Em suma, foram escanteados.

Christofer Pallu
Fernando Costa

Os melhores filmes da década segundo os colaboradores e camaradas do Cineclube Soberano:

01. Wolfram, a Saliva do Lobo (Joana Torgal e Rodolfo Pimenta)
02. Djinn (Tobe Hooper)*
03. Os Mercenários (Sylvester Stallone)*
04. Don’t Go Breaking My Heart (Johnnie To)
05. Cavalo Dinheiro (Pedro Costa)
06. A Garota de Lugar Nenhum (Jean-Claude Brisseau)
06. Holy Motors (Leos Carax)
08. Filme Socialismo (Jean-Luc Godard)
09. Educação Sentimental (Júlio Bressane)
10. A Visita (M. Night Shyamalan)
10. Adeus à Linguagem (Jean-Luc Godard)
12. Bem-Vindo a Nova York (Abel Ferrara)
13. Sully (Clint Eastwood)
14. A Parte dos Anjos (Ken Loach)
15. O Lamento (Na Hong-jin)

*Exclusivamente no corte do diretor.

Diretores:

01. Joana Torgal e Rodolfo Pimenta
02. Jean-Luc Godard
03. M. Night Shyamalan
04. Clint Eastwood
05. Tobe Hooper
06. Sylvester Stallone
07. Johnnie To
07. Ken Loach
09. Abel Ferrara
09. Pedro Costa
11. Jean-Claude Brisseau
11. Leos Carax
13. Júlio Bressane
14. Rob Zombie
15. Eugène Green

Listas individuais:

Andrew Olejnik:

01. Soldado Universal – Juízo Final (John Hyams)
02. ACAB – All Cops Are Bastards (Stefano Sollima)
03. Sniper Americano (Clint Eastwood)
04. Resident Evil – Retribuição (Paul Anderson)
05. As Senhoras de Salem (Rob Zombie)
06. Roma Morte (Asilo Febril)

Bruno Andrade:

01. Wolfram, a Saliva do Lobo (Joana Torgal e Rodolfo Pimenta)
02. Já visto, jamais visto (Andrea Tonacci)
03. A Garota de Lugar Nenhum (Jean-Claude Brisseau)
04. Adeus à Linguagem (Jean-Luc Godard)
05. Holy Motors (Leos Carax)
06. O estranho caso de Angélica (Manoel de Oliveira)

Bruno Kondlatsch Reddin:

01. Holy Motors (Leos Carax)
02. Cavalo Dinheiro (Pedro Costa)
03. Wolfram, a Saliva do Lobo (Joana Torgal e Rodolfo Pimenta)
04. On the Beach at Night Alone (Hong Sang-soo)
05. Filme Socialismo (Jean-Luc Godard)
06. Don’t Go Breaking my Heart (Johnnie To)
07. A Garota de Lugar Nenhum (Jean-Claude Brisseau)
08. Everybody Wants Some (Richard Linklater)
09. Seventh Code (Kiyoshi Kurosawa)
10. Easy Rider (James Benning)
11. Sully (Clint Eastwood)
12. Fragmentado (M. Night Shyamalan)
13. Diálogo de Sombras (Jean-Marie Straub)
14. A Cidade Perdida de Z (James Gray)
15. Alive in France (Abel Ferrara)

Cauby Monteiro:

01. O Conto da Princesa Kaguya (Isao Takahata)
02. Caminho para o Nada (Monte Hellman)
03. Adeus à Linguagem (Jean-Luc Godard)
04. Cavalo Dinheiro (Pedro Costa)
05. A Garota de Lugar Nenhum (Jean-Claude Brisseau)
06. Educação Sentimental (Júlio Bressane)
07. A Cidade Perdida de Z (James Gray)
08. Certo Agora, Errado Antes (Hong Sang-soo)
09. Holy Motors (Leos Carax)
10. Sniper Americano (Clint Eastwood)
11. Cópia Fiel (Abbas Kiarostami)
12. Don’t Go Breaking My Heart (Johnnie To)
13. O Último Mestre do Ar (M. Night Shyamalan)
14. Toy Story 3 (Lee Unkrich)
15. Crianças Lobo (Mamoru Hosoda)
16. Romance à Francesa (Emmanuel Mouret)
17. Vidas ao Vento (Hayao Miyazaki)
18. Para o Outro Lado (Kiyoshi Kurosawa)
19. Mostre a Língua, Moça (Axelle Ropert)
20. Café Society (Woody Allen)

Christofer Pallu:

01. Djinn (Tobe Hooper)*
02. Os Mercenários (Sylvester Stallone)*
03. Wolfram, a Saliva do Lobo (Joana Torgal e Rodolfo Pimenta)
04. Bem-Vindo a Nova York (Abel Ferrara)
05. O Último Mestre do Ar (M. Night Shyamalan)
06. Don’t Go Breaking My Heart (Johnnie To)
07. Para o Outro Lado (Kiyoshi Kurosawa)
08. Sully (Clint Eastwood)
09. A Parte dos Anjos (Ken Loach)
10. Cavalo Dinheiro (Pedro Costa)
11. Alive in France (Abel Ferrara)
12. Filme Socialismo (Jean-Luc Godard)
13. Easy Rider (James Benning)
14. O Lamento (Na Hong-jin)
15. A Mula (Clint Eastwood)
16. Soldado (Stefano Sollima)
17. Educação Sentimental (Júlio Bressane)
18. Wild City (Ringo Lam)
19. 31 (Rob Zombie)
20. Le Masque de la Méduse (Jean Rollin)

*Exclusivamente no corte do diretor.

Eduardo Savella:

01. Filme Socialismo (Jean-Luc Godard)
02. Educação Sentimental (Júlio Bressane)
03. A Visita (M. Night Shyamalan)
04. Vidro (M. Night Shyamalan)
05. La Sapienza (Eugène Green)
06. Pasolini (Abel Ferrara)
07. Cavalo Dinheiro (Pedro Costa)
08. A Mula (Clint Eastwood)
09. Para o Outro Lado (Kiyoshi Kurosawa)
10. O Traidor (Marco Bellocchio)
11. O Inconsolável (Jean-Marie Straub)
12. Roma Morte (Asilo Febril)
13. Sully (Clint Eastwood)
14. A Parte dos Anjos (Ken Loach)
15. Crianças Lobo (Mamoru Hosoda)
16. Eu e Você (Bernardo Bertolucci)
17. Certas Mulheres (Kelly Reichardt)
18. Don’t Go Breaking My Heart (Johnnie To)

Fernando Costa:

01. Jimmy’s Hall (Ken Loach)
02. A Parte dos Anjos (Ken Loach)
03. Djinn (Tobe Hooper)*
04. Wolfram, a Saliva do Lobo (Joana Torgal e Rodolfo Pimenta)
05. Bem-Vindo a Nova York (Abel Ferrara)
06. Os Mercenários (Sylvester Stallone)*
07. Penance (Kiyoshi Kurosawa)
08. O Lamento (Na Hong-jin)
09. Últimas Conversas (Eduardo Coutinho)
10. A Visita (M. Night Shyamalan)
11. Sully (Clint Eastwood)
12. Soldado (Stefano Sollima)
13. A Walk Among the Tombstones (Scott Franck)
14. Educação Sentimental (Júlio Bressane)

*Exclusivamente no corte do diretor.

Fernando Iolla:

01. Os Mercenários (Sylvester Stallone)*
02. Djinn (Tobe Hooper)*
03. 31 (Rob Zombie)
04. Sully (Clint Eastwood)
05. A Visita (M. Night Shyamalan)
06. O Capiau Contra o Diabo (Fernando Iolla e Christofer Pallu)
07. Aliados (Robert Zemeckis)
08. Fragmentado (M. Night Shyamalan)
09. Sicario (Denis Villeneuve)
10. Sniper Americano (Clint Eastwood)

*Exclusivamente no corte do diretor.

Leonardo Otto:

01. Don’t Go Breaking My Heart (Johnnie To)
02. Faça-me Feliz (Emmanuel Mouret)
03. Como Fernando Pessoa Salvou Portugal + Le Fils de Joseph (Eugène Green)
04. O Lamento (Na Hong-jin)
05. Vôo (Robert Zemeckis)
06. Cop Car (Jon Watts)

Pedro Favaro:

01. Meu Filho, Olha o Que Fizeste! (Werner Herzog)
02. A Caverna dos Sonhos Esquecidos (Werner Herzog)
03. Don’t Go Breaking My Heart (Johnnie To)
04. Holy Motors (Leos Carax)
05. Era uma vez em Nova York (James Gray)
06. Cavalo Dinheiro (Pedro Costa)
07. Para o Outro Lado (Kiyoshi Kurosawa)
08. Certo Agora, Errado Antes (Hong Sang-soo)
09. Mia Madre (Nanni Moretti)
10. João Benárd da Costa: Outros Amarão as Coisas que Amei (Manuel Mozos)
11. Romance à Francesa (Emmanuel Mouret)
12. Everybody Wants Some (Richard Linklater)
13. Sully (Clint Eastwood)
14. Alive in France (Abel Ferrara)
15. Antes que Tudo Desapareça (Kiyoshi Kurosawa)
16. Vidro (M. Night Shyamalan)

Por ordem de lançamento.

“Da impureza como categoria política” – Parte VII: A dissensão das imagens

[Parte VI]

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“Não existe unidade perdida a retomar, não existe realidade por detrás da imagem […] existem cenas de dissensão em todo o lado e a toda a hora. A dissensão significa que existem várias maneiras de construir a realidade como um conjunto de condições, incluindo uma distribuição polêmica das capacidades. […] É disso que se trata na subjetivação política: dividir a unidade do que é dado e a evidência do visível e, como consequência, do possível. Trata-se de inventar diversos universos em conflito dentro de um e do mesmo universo.”

Jacques Rancière – As desventuras do pensamento crítico

What is now proved was once, only imagin’d.”

William Blake – Proverbs of Hell

Cannibal Holocaust foi uma experiência-limite para o horror político: ao transpor a impureza do fundo para a forma mesma, ao devastar os pressupostos do discurso (de qualquer discurso) fílmico recalcitrando-o em sua própria articulação, e ao identificar a pretensão de verdade desse discurso ao produto das convenções genéricas que promovem a realidade como espetáculo, Deodato colapsou no processo toda sorte de determinação categorial que estivesse ao alcance de sua proposta (conceitos de ficção/documentário, monstros/humanos, civilização/barbárie são tensionados ao ponto de se tornarem indiscerníveis).

O que resta do cinema de horror após a investida cética de Deodato? Em Eles vivem (They Live, 1988) John Carpenter parece ter encontrado uma resposta, a saber, uma espécie de inversão visionária, uma meta-alegoria na qual a relação costumeira entre ficção de horror e realidade política é incorporada ao próprio tecido imagístico do filme e transformada. Numa exposição muito breve, o recurso à alegoria como procedimento interpretativo – que historicamente acarretou todo tipo de disputa crítica (tal como já exemplificamos no comentário sobre Os invasores de corpos) – consiste na (re)tradução da figuração particular da obra em termos de um sentido próprio subjacente, mais abstrato e geral. Se o filme de Deodato veda a alegorização política (a recusa em atribuir significados mais profundos à superfície horrenda de suas imagens), Carpenter a restitui, em Eles vivem, por meio do incansável trabalho de confrontação de dois registros fílmicos distintos – a verdade política não deriva nem da pura “evidência” sensível que a imagens veiculam, nem de um sentido subjacente a elas, e sim da reelaboração dissensual da realidade que exorta os personagens a tomar partido frente a ela.

Na sequência central do filme, o protagonista, John Nada (Roddy Piper), experimenta pela primeira vez um par de óculos escuros que alteram radicalmente a sua percepção do mundo social em que vive. Até então, o terço inicial do filme havia sido dominado por um registro fílmico em cores e por uma narrativa que assumia um tom genericamente “realista” (que daqui para frente, chamaremos de registro habitual). A partir do momento em que Nada coloca os óculos, uma segunda série de imagens muito diferentes se apresenta: através das lentes, um “outro mundo” se revela – o mundo “fictício” de uma narrativa de horror, povoado por monstros extraterrestres de colarinho branco, em que os anúncios publicitários ostentando imagens da felicidade se transformam em mensagens ideológicas que incitam ao mais crasso conformismo social. Trata-se de um registro inventivo (agora em preto-e-branco) dessa mesma realidade, sua transposição para os domínios do horror.

Ao intercalar closes de Nada feitos no registro habitual com seus respectivos contraplanos de seu ponto de vista no registro inventivo, Carpenter inicia um sutil jogo que interrompe a continuidade espacial/narrativa/discursiva do filme. A montagem alternada desses dois registros imagísticos, que representam um mesmo mundo de formas radicalmente distintas – ainda que complementares – quebra a continuidade representacional e impõe tanto ao espectador quanto ao protagonista o choque epistemológico desses dois conjuntos de imagens que provoca uma reconfiguração da maneira como o espaço social é concebido no filme por cada uma dos registros individuais: o gesto mais comum de Nada, o de pôr e tirar os óculos, confronta essas séries imagísticas, criando associações entre elas, traduzindo-as entre si. O resultado de tal tradução imagística é o remapeamento cognitivo do mundo que permite ao protagonista restituir uma unidade sintética às imagens contraditórias. Carpenter cria, assim, um palimpsesto fílmico: os dois registros paralelos constantemente apagam e reescrevem o que vemos até seu desfecho, no qual ambos o convergem na constituição de uma imagem comum do espaço social (quando os extraterrestres e as mensagens manipulatórias finalmente adentram o campo do visível no registro habitual). É função da montagem que atrita essas imagens antecipar essa restituição política (porque prática) do mundo social comum que demarca os verdadeiros conflitos e redistribui a relação entre visível e invisível, entre igualdade e diferença.

O que Carpenter propõe com Eles vivem, cremos, é uma forma de realismo cinematográfico anômala ao que seus teóricos (notadamente Bazin) conceberam. O procedimento de montagem do filme está em franco desacordo com uma certa concepção de realismo ontológico que privilegia a conservação da integridade fenomenológica da realidade frente a uma câmera que não a disseca, mas simplesmente a registra de tal forma a permitir que o olho passeie livremente pelo seu desdobrar na tela. Tal procedimento, porém, pode engendrar algo como um realismo epistemológico/cognitivo centrado não na continuidade do registro único, mas na justaposição conflitiva de diferentes registros, isto é, de diferentes versões de realidade, de formas distintas através das quais um mundo comum pode ser traduzido em discursos dissensuais cujo confronto não é outra coisa senão o próprio campo da ação política.

Christofer Pallú e Fernando Costa

“Da impureza como categoria política” – Parte VI: A traição das imagens

[Parte V]

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“Para mim, filme é entretenimento. Isso que é o cinema. É Rossetti mas também é Jacopetti e Mundo Cão. Eu gostei daquele filme pelas imagens e pela eloquência, mas o que eu não gostei foi uma cena onde alguns homens foram condenados à morte e seriam executados e [o diretor Gualtiero] Jacopetti pediu a eles para adiarem a execução, de modo que o pôr-do-sol tornaria o plano mais belo. Você sabe, combinado com a música. Eu fiquei perturbado pela técnica. Eu odiei aquilo. Moralmente, eu estava perturbado por isso. Quero dizer, adiar uma execução, você está lidando com a vida de uma pessoa! Então essa foi a ideia para Cannibal Holocaust – é contra isso. É contra o que jornalistas estão fazendo, transformando tudo em entretenimento. É contra o elemento voyeurista ao reportar algo. Eu queria explorar isso em meus filmes, explorar a filosofia por trás do furo, mas foi tão real que se voltou contra mim. Mas eu queria mostrar que eu odeio jornalistas se dirigindo a uma mulher que perdeu sete filhos de uma forma dramática e dizendo “como você se sente?”. Quero dizer, como você pensa que ela se sente? Que tipo de pergunta é essa? É sadismo. É como jornalistas indo a Auschwitz e perguntando a um judeu, ‘bem, como se sente agora que seu bebê está morto?’. Todo dia na televisão é assim. Então, é um indiciamento de captação de notícias. Jornalistas são muito protegidos. Eles podem dizer o que quiserem e defenderem uns aos outros, enquanto um diretor de cinema, mesmo filme sendo pura ficção e fantasia, será sempre atacado por críticos e jornalistas pelo que estão tentando dizer!”

Ruggero Deodato

Em Shyamalan resta a fé quando todos os discursos falham. Em Ruggero Deodato, pelo contrário, um ceticismo resoluto questiona não só as tentativas explanatórias científicas ou políticas como também as próprias imagens do cinema. Pois não lhe basta mostrar o horror através de imagens, mas mostrar que o horror são as imagens mesmas: que quem as filma é perpetrador de um crime e quem crê nelas, seus cúmplices. Cannibal Holocaust (Ruggero Deodato, 1980) é o filme-manifesto de uma tal crítica intransigente contra a apropriação das imagens da violência em favor tanto do espetáculo que anestesia seu impacto sob a rubrica do “entretenimento” quanto da retórica documental que exime seus realizadores da responsabilidade pelo que elas exibem (“nós só mostramos a realidade”, eles dizem).

A abertura de Cannibal Holocaust diz: “Com a intenção de manter a autenticidade, algumas cenas foram inteiramente mantidas”, referindo-se ao material (ficcional) filmado por uma equipe de cineastas que vão à selva para fazer um documentário sobre tribos que ainda praticam canibalismo. Após o desaparecimento dos cineastas, o antropólogo Harold Monroe (Robert Kerman) é enviado à mesma floresta com uma equipe de resgate para tentar descobrir o que ocorreu e acaba recuperando as câmeras com muitos rolos de película intactos. Com interesse na exibição do documentário, o antropólogo é contratado por uma grande rede de televisão para investigar o que aconteceu analisando o material que filmaram para depois exibi-lo. Logo após aceitar o trabalho, o antropólogo assiste a uma exibição parcial de um documentário anterior do diretor Alan Yates (Gabriel Yorke – um dos assassinados pelos índios), cujo conteúdo se resume ao fuzilamento de pessoas vivendo em miséria durante algum conflito. Assim que finaliza a exibição, uma funcionária da televisão revela que Yates pagou os soldados para atuarem, criando um exército inimigo que não existia.

Todos os momentos em que ocorre um ato de barbárie, os documentaristas são registrados agindo de duas formas: cometendo atrocidades enquanto buscam imagens cada vez mais chocantes ou adaptando suas reações para uma câmera (em outros momentos, quando sabem que não vão usar o registro para o filme, os personagens agem com completa indiferença), fazendo comentários tentando explicar as atitudes dos índios, transformando suas expressões e ações em performances. O enquadramento de uma ação e o corte, a seleção do que deve ser apresentado ao público, irá redefinir tudo o que ocorreu com os documentaristas e as tribos indígenas.

Assim como o falso documentário The Green Inferno, produzido na selva, a narrativa assumidamente ficcional de Nova Iorque e das cenas da equipe de resgate acaba em vários momentos se confundindo com o modo de filmagem documental do restante, quebrando em vários momentos a quarta parede (os animais e algumas pessoas reagem à câmera, equipamento de filmagem sendo mostrado), algo que a princípio parece resultado de uma reportagem televisiva sobre o trabalho do antropólogo, mas acontece também em cenas sem um repórter presente, os planos dos animais na selva atacando a câmera sendo os mais explícitos. Após chegar a esse ponto, em que todo discurso político no filme se torna mera apropriação de imagens para uma compreensão aceitável de qualquer fato para os espectadores, com a narrativa encenada e a do documentário confundidas, o filme descarta qualquer possibilidade de criar sentido ou justificação para os atos de violência extrema pelos quais ficou infame, é exatamente um contraponto às obras que empreendem a exploração obsessiva desse tipo de material fílmico para vender uma grande narrativa moralizante a partir de qualquer tragédia.

É o absoluto ceticismo na capacidade de fazer cinema com pretensão de autenticidade ou indiferença/imparcialidade em relação às imagens que se produz, pois elas sempre estarão a serviço de uma ideologia que precede essas imagens e a realidade que enquadram.

Christofer Pallú e Fernando Costa

[Parte VII]

“Da impureza como categoria política” – Parte V: Ficção científica pueril

[Parte IV]

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“Só se pode falar de maneira eufemística sobre o que é incomensurável com toda a experiência, assim como alguém fala na Alemanha do assassinato dos judeus. Tornou-se um a priori total, de forma que a consciência, atordoada, não mais assume uma posição a partir da qual possa refletir esse fato. O desesperador estado das coisas fornece – com medonha ironia – um meio de estilização que proteja essa precondição pragmática de qualquer contaminação pela ficção científica pueril.”

Theodor W. Adorno – Trying to understand Endgame

Nossas categorias políticas não falham apenas na inaptidão de organizar um coletivo em meio à exceção política, mas também frente à incapacidade de narrar a própria catástrofe. Isso se manifesta, em O tempo do lobo, na bela cena em que uma das personagens escreve uma carta ao pai morto. Não se trata apenas de se questionar sobre “o que narrar”, também cabe a pergunta: “para quem narrar?”. O colapso da sociedade implica a perda do “outro” a quem (e com quem) se pode constituir uma narrativa – é necessário inventar tal interlocutor; é o que Eva (Anaïs Demoustier) faz ao escrever seu breve relato sobre a vida após o fim. Esse mesmo dilema já havia sido elaborado por Adorno em seu texto fundamental sobre Fim de partida, de Samuel Beckett: é o dilema de tentar narrar a catástrofe radical, quando a própria narração se torna impossível, quando o colapso social destitui aquele a quem e com quem construímos política e socialmente tal narrativa; quando o cataclismo, nos dizeres de Adorno, constitui um “a priori” indizível, e qualquer tentativa de explicá-lo, de pronunciá-lo até, não gera mais que uma inócua “ficção científica pueril”. Tal é tônica também de Fim dos tempos (The Happening, 2008), de M. Night Shyamalan.

Se os filmes de Romero e Haneke exploravam o colapso social como um colapso político, reduzindo relações sociais à selvageria, mostrando a incapacidade de indivíduos e grupos lidarem com uma catástrofe, Shyamalan destitui essas relações quase que completamente. O problema de incompreensão e incomunicabilidade entre indivíduos (generalizado ao nível da sociedade como um todo) é dado desde o início dos eventos, com cenas mostrando todo tipo de grupo na tentativa de racionalizar porquê e como estão ocorrendo os suicídios em massa. Nos meios de comunicação, explicações para os eventos e suposições várias sobre o que está levando as pessoas a cometerem tais atos que são prontamente desmentidas nas cenas seguintes. As relações entre indivíduos permanecem completamente abstratas por toda a duração do filme, sendo reações diretas a essa ameaça externa que não podem compreender – sua interação se dá apenas para tentarem descobrir um modo de escapar da morte.

O grande momento do filme, em que se demonstra o absurdo da atitude humana contra essa ameaça que não se pode identificar nem compreender, ocorre após a separação de um grande número de sobreviventes em pequenos subgrupos, um deles liderado pelo protagonista Elliot (Mark Wahlberg). Essas pessoas, sem contato visual com outros grupos, começam a ouvir tiros e supõem que estão cometendo suicídio; imediatamente voltam-se para Elliot, exigindo-lhe uma resposta sobre o que devem fazer para ajudar o outro grupo e continuarem vivos. Elliot, um professor de ciências, é, juntamente com um soldado na sequência anterior, visto como autoridade naquele e, portanto, sua decisão dita a atitude que vão tomar. Em desespero, o protagonista tenta encontrar qualquer tipo de lógica com os dados que possui e sugere que as plantas podem estar atacando humanos através do vento. Após chegar a essa conclusão, há um plano em que o professor olha para o extracampo e diz: “lá vem ele”, referindo-se ao vento como o monstro que estaria perseguindo o grupo. Os sobreviventes então começam a correr e, no contraplano, há apenas o movimento de plantas, uma paisagem vazia; o quadro volta para as pessoas, que expressam surpresa por nada acontecer a elas. É a revelação mais explícita da ausência de qualquer causa externa para os suicídios em massa, são os próprios homens os responsáveis por suas mortes. O monstro não pode ser identificado, os personagens buscam no vazio uma justificativa para suas ações e essa é a origem do Terror para Shyamalan. E o diretor não limita a exploração desses temas a um ambiente específico, recusa mostrar o comportamento humano como circunstancial, resultado do meio em que o indivíduo age ou de como certo grupo é organizado. Os suicídios começam em grandes centros urbanos para gradualmente ocorrerem em locais menos povoados, até finalizar na fazenda autossuficiente de uma mulher que vive solitária e rompeu deliberadamente todo contato com o mundo, no final desmentindo a ideia que a suposta toxina não poderia atingir grupos pequenos (e aqui é apenas um indivíduo).

Indivíduos atentam contra si mesmos, sua autoimolação é quase um ritual, momentos ainda mais assustadores porque são os únicos em que de fato há coesão na ação coletiva, onde todos buscam o mesmo objetivo e conseguem atingi-lo. O maior exemplo disso é a cena na rua congestionada: após o policial atirar em sua própria cabeça, vemos o restante da cena num plano detalhe da arma que usou, objeto que traz outras pessoas para o centro do quadro, liga elas ao centro da ação em tela. Esses planos detalhes das mãos das pessoas buscando um instrumento para tirarem suas vidas são repetidos constantemente e funcionam como o exato oposto daqueles que estabelecem uma relação verdadeira entre os indivíduos, como a cena em que Alma (Zooey Deschanel) pega a mão de Jess (Ashlyn Sanchez) após o pai da menina dizer “não segure a mão da minha filha se não for para valer”. Planos assim, de contato entre indivíduos, de pessoas dando as mãos, só são repetidos após os personagens desistirem de reagir contra o que acreditam levar ao suicídio. A reconciliação familiar no final só é possível depois de os personagens perderem qualquer esperança de sobrevivência para recuperarem contato uns com os outros. No clímax do filme, os protagonistas só podem se comunicar em um local que os mantém isolados e, numa atitude completamente irracional, abandonam a segurança dos abrigos que também os afastavam para o encontro num campo aberto, rompendo o insulamento, expondo-se ao ambiente que até então consideravam hostil e que poderia induzir-lhes ao suicídio. É um gesto de entrega, um salto de fé que reintegra a família esfacelada e, num âmbito maior, restitui a sociabilidade mais elementar a esses indivíduos solitários, atirados a um mundo que são incapazes de compreender.

Christofer Pallú e Fernando Costa

[Parte VI]

“Da impureza como categoria política” – Parte IV: Homo homini lupus

[Parte III]

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“Assim, uma das hipóteses acerca da correlação entre o Iluminismo e o surgimento do gênero do horror é a de que o gênero pressupunha algo como uma visão iluminista da realidade científica para gerar o necessário sentimento de uma violação da natureza. Ou seja, o Iluminismo tornou disponível o tipo de concepção da natureza ou o tipo de cosmologia necessário para criar um sentimento de horror.”

Noël Carroll – A filosofia do horror, ou Paradoxos do coração

Os invasores de corpos – em particular na versão de Kaufman – alegorizavam precisamente a inversão do esquema categorial de Carroll: o monstro-invasor é o agente derradeiro de um tipo de pureza (se a entendermos como unidade incorruptível da espécie), a morte da política pela normatização consensual da conduta e, por fim, o conformismo social absoluto como meio único da autoconservação individual – a paradoxal situação da sociedade de consumo massificada e seu modelo de individualismo sem individualidade.

Mas para além dos curtos-circuitos ideológicos do horror político de Mortos que matam e os Invasores propõem, há os filmes em que a impureza (ou seu avesso, a pureza que impõe violentamente uma norma) jamais se entifica num monstro. É discutível que um filme como O tempo do lobo (2003), de Michael Haneke, possa pertencer ao gênero do horror (especialmente se adotarmos de maneira estrita os critérios de Carroll), ainda que muito de sua construção formal e narrativa nos leve a pensar que sim: primeiramente, ele evoca um cenário de colapso social e se centra a partir de sua segunda metade nos impasses morais e políticos do grupo de sobreviventes – seguindo, nesse aspecto, de perto o modelo dos filmes apocalípticos de Romero. O precursor natural de O Tempo do Lobo é, sem dúvida, Exército de extermínio (The Crazies, 1973), no qual uma doença acidentalmente disseminada num acidente militar inicia uma epidemia de “insanidade” entre os habitantes de uma comunidade rural. Superficialmente, a “impureza” está nos infectados, mas a perspicácia política de Romero o conduz a um insight ainda mais proveitoso: quando um estado de exceção é declarado e os militares intervêm, gradativamente vemos as linhas entre sanidade e loucura serem borradas – qualquer um, infectado ou não, se torna suscetível ao comportamento irracional ou (ainda mais extremo) à atribuição de loucura por parte de outros. A impureza passa de indivíduos desviantes (exceções à norma) para o contexto em que tais atitudes de loucura se tornam inevitáveis até ao mais racional dos indivíduos (o estado de exceção em que a insanidade é a norma). Ao criar o monstro sem máscara de monstro, Romero antecipa o experimento de Haneke no horror.

Há em O tempo do lobo uma atmosfera de sombras e incertezas, construída pela fotografia em chiaroscuro com um uso muito hábil da iluminação natural, sugere que toda sorte de perigo pode repentinamente emanar do fora de campo. Por fim, há uma metáfora central intrigante no filme que identifica homens a lobos. Em dois momentos, um personagem faz menção ao fato de que, após a catástrofe desconhecida que trouxe o colapso, cães domésticos famintos repentinamente se voltaram contra seus donos – este mesmo personagem, após sacrificar de maneira totalmente desnecessária uma cabra que fornecia leite às crianças do grupo, é chamado de “cão”. Animais domesticados agindo como predadores selvagens; homens civilizados retornando à barbárie – homo homini lupus. Se há uma impureza, no sentido de recalcitrância categorial explicado acima, introduzida por Haneke de forma muito sutil em seu filme está precisamente em estabelecer tal relação: fica clara sua intenção de suscitar um tipo de horror muito específico aos europeus civilizados que assistem a uma distância condescendente a catástrofes alheias.

Em dado momento de seu livro, Carroll aponta a relação estreita entre a consolidação do gênero de horror e a formação da concepção de mundo científica do Iluminismo que tal gênero subverte. A afinidade entre ambos não é casual: o horror como gênero manifesta uma espécie de corrosão de nossa própria visão de natureza; ele invoca e canaliza nossos maiores temores de que tal noção seja ameaçada, corrompida. Ora, o que é válido para nosso conceito iluminista de natureza não o seria também para nossas formas de organização políticas modernas tributárias dessa mesma matriz de pensamento (democracia representativa, progresso, cultura em sua acepção moderna)? Se sim, isso explicaria por que o cenário apocalíptico é um dos motivos mais recorrentes do gênero: não apenas uma intervenção antinatural do “monstro”, como também a dissolução do estado de direito tal como o entendemos é um elemento do horror. O grande mérito de O tempo do lobo consiste em nos lembrar que o horror não existe apenas na subversão de nossa compreensão científica de mundo por um monstro intruso, mas também no colapso da forma de organização social que lhe é correspondente. Ao subtrair a presença explícita de monstros ou da causa da catástrofe, Haneke traz à nossa consciência esse fato, o de que o horror deriva não apenas de uma subversão da ordem natural, de nossas categorias naturais (monstros), mas de nossas categorias políticas (estado de exceção, cenários de deterioração social, etc).

Christofer Pallú e Fernando Costa

[Parte V]

“Da impureza como categoria política” – Parte III: A astúcia da autoconservação

[Parte II]

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“A astúcia da autoconservação vive do processo que rege a relação entre a palavra e a coisa. Os dois atos contraditórios de Ulisses no encontro com Polifemo – sua obediência ao nome e seu repúdio dele – são, porém, mais uma vez a mesma coisa. Ele faz profissão de si mesmo negando-se como Ninguém, ele salva a própria vida fazendo-se desaparecer.”

Theodor W. Adorno e Max Horkheimer – Dialética do esclarecimento

Todas as adaptações cinematográficas de Body Snatchers, o romance escrito por Jack Finney em 1955, retratam pessoas que abandonam sua individualidade para se tornarem parte de um coletivo alienígena em vias de tomar conta do planeta. Os extraterrestres substituem a humanidade sob pretexto de instaurar uma comunidade orgânica sem os problemas sociais, abolindo qualquer traço comportamental que fuja ao padrão estabelecido. Por essas características gerais, a primeira adaptação cinematográfica do romance, Vampiros de Almas (Invasion of the Body Snatchers, 1956), dirigida por Don Siegel, é comumente vista como uma óbvia alegoria anticomunista, ainda que a época de seu lançamento coincida precisamente com o ocaso da doutrina de denúncias públicas da “ameaça vermelha” propagada pelo senador Joseph McCarthy. Entretanto, uma interpretação alegórica alternativa cada vez mais recorrente na fortuna crítica do filme o enxerga como o exato oposto da reputação antivermelha que o celebrizou, concebe-o, paradoxalmente, como uma obra antimacartista. E tal hipótese não é de forma alguma mirabolante, visto que até detalhes circunstanciais de produção parecem sustentá-la: o roteirista do filme Daniel Mainwaring constava na lista negra de Hollywood, que arrolava os nomes de vários profissionais do cinema suspeitos de simpatizar com ideais socialistas ou de manter alguma ligação com o Partido Comunista Americano. Por essa leitura, os pods (como são referidos os invasores no filme devido ao formato da “semente” que os transporta) alegorizam não os comunistas tomando o controle dos corações e mentes dos americanos, mas a instauração de uma sociedade regida pela suspeita e pela denúncia dos desviantes da conduta oficial – e o fato de a trama se passar numa pequena comunidade interiorana, a fictícia Santa Mira, ainda nos chama a atenção para os evidentes aspectos comuns tanto ao provincianismo de ideologias comunitárias tradicionais quanto ao projeto coletivista pseudorrevolucionário dos invasores. As duas interpretações contraditórias expressam maneiras diferentes relacionar uma mesma obra com algum contexto particular. Esse tipo de paralelismo alegórico que estabelece relações convencionais (e abstratas) entre filme o contexto, porém, não é parte essencial de nosso itinerário interpretativo. O entendimento satisfatório do sentido político dos invasores de corpos, a nosso ver, passa antes por investigar o próprio conceito paradoxal desses monstros: a ideia de conformismo absoluto como estratégia de autoconservação em quaisquer conjunturas específicas, sejam elas inerentes a uma sociedade capitalista, fascista ou comunista. O que importa não é estabelecer ligações com contextos particulares, mas desvendar como operam essas estranhas criaturas.

Os invasores de corpos (Invasion of the Body Snatchers, 1978), refilmagem de Philip Kaufman, propõe uma fecunda variação sobre o filme original de Siegel ao deslocar a invasão da provinciana Santa Mira para a São Francisco dos anos de 1970, elaborando um discurso sobre a sociedade americana pós-revolução sexual em específico, mas justamente usando discursos contraditórios para explorar aquilo que todo tipo de ideologia ou grupo político tem em comum. A versão de 78 enfatiza de maneira muito mais clara indiscernibilidade entre os pods e os seres humanos, precisamente porque estes, na tentativa de sobreviver, se conformam ao comportamento normativo dos invasores alienígenas, situando isso numa sociedade caracterizada por sua valorização de um tipo de individualismo sem individualidade – calcado antes na obtenção de sucesso pela estratégia de ajustamento social crasso do que ao cultivo da autonomia individual que deveria, sobretudo, resistir às coerções do meio –, com a pretensão de usar isso para levar ao comportamento e pensamento fora de qualquer norma da velha sociedade que estão abandonando. É uma potencialização da alegoria central da obra original.

Na versão de Kaufman, a cidade já está, desde o princípio, tomada por um mal-estar inarticulado que a chegada dos invasores apenas torna manifesta. Logo no começo do filme, alguns funcionários se organizam em segredo para promover uma pequena retaliação ao inspetor da vigilância sanitária Matthew Bennell (Donald Sutherland) que interditou o restaurante onde trabalhavam, acarretando a iminente demissão de todos eles. Tal ocorrido nada tem a ver com a invasão ainda incipiente, mas a forma como Kaufman o engendra cinematograficamente (pelo enquadramento oblíquo de olhares que estabelecem uma comunicação subterrânea entre os membros de um grupo estranho, inapreensível) sugere uma perturbadora simetria com o modus operandi dos duplos alienígenas incubados nos pods.

Se há algo que os invasores de corpos desafiam é a ideia do monstro como uma entidade “impura”. Pois eles encarnam (e, de alguma forma, parodiam) exatamente o oposto: constituem a comunidade orgânica definitiva que eliminou toda e qualquer impureza externa, cujos membros individuais são partes descartáveis de uma unidade social imaculada. Ironicamente, porém, essa poderosa estratégia evolutiva que os pods desenvolveram vem com o evidente custo, a saber, a necessidade de uma espécie hospedeira que forneça a matriz de seus corpos. Sua pureza absoluta é, portanto, em si mesma, informe e parasitária. “Nós nos adaptamos, nós sobrevivemos. A função da vida é a sobrevivência”, observa o Dr. David Kibner (Leonard Nimoy), porta-voz dos pods. Os invasores de corpos, como um perfeito experimento mental, acaba por nos conduzir a uma conclusão inevitável acerca da paradoxal natureza desses seres: são puros na medida em que eliminam toda forma de vida que não conseguem incorporar, mas não possuem características próprias senão aquelas que parasitaram de outras espécies com o objetivo de perpetuar a sua própria, porém só o conseguem por meio de formas biológicas alheias. A única coisa que os invasores conservam é sua inessência absoluta. Pois a vida é, para essa infeliz espécie, o simples procedimento abstrato de conformação às condições dadas.

Christofer Pallú e Fernando Costa

[Parte IV será postada em breve.]

 

“Da impureza como categoria política” – Parte II: Eis o monstro

[Parte I]

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“É uma convicção minha a de que talvez algumas doenças percebidas como doenças que destroem uma máquina em bom funcionamento, na verdade transformam essa máquina em uma máquina que faz outra coisa, e nós é que temos de descobrir o que essa máquina passa a fazer agora. Ao invés de termos uma máquina defeituosa, o que temos é com uma máquina bastante funcional que apenas serve a um propósito diferente.”

David Cronenberg

Mortos que matam (The Last Man on Earth), filme B ítalo-americano de 1964 codirigido por dois cineastas obscuros, Ubaldo Ragona e Sidney Salkow, e estrelado por Vincent Price, possui um estranho antecessor, nada menos que O eclipse (L’eclisse, 1962) de Michelangelo Antonioni. Ambos tratam da ruína de um mundo, do mesmo mundo, literalmente: foram filmados na EUR (Esposizione Universale Romana), o célebre subúrbio inacabado concebido por Mussolini nos anos de 1930 como um monumento ao renascimento da Itália sob o fascismo. A notável sensibilidade de Antonioni para a arquitetura conferiu a tal cenário preponderância, pois nele as formas de um urbanismo abstrato não só expressam como condicionam relações humanas de antemão exauridas de experiência articulada ou significante e, por fim, conduzem à brutal subtração dos protagonistas (Monica Vitti desliza para um fora de campo instável, que não mais pode restituir sua presença ao quadro – resta-lhe a ausência); é quando a narrativa se dissolve na sequência final de O eclipse, nos planos pétreos, geométricos, de paisagens urbanas que, quando não de todo inabitadas, se deixam tomar pelos raros transeuntes anônimos, personagens aleatórios esvaindo-se do quadro tão rápido quanto o adentram.

A mesma tônica do espaço destituído de presença – ou melhor, repleto da própria ausência humana, dos traços de uma vida pregressa extinta – é o ponto de partida de Mortos que matam. Uma série de planos estáticos introduz a cidade despovoada, os edifícios ermos e as ruas estagnadas em que avultam cadáveres. Robert Morgan (Price) sobreviveu – ao que tudo indica, sozinho – à epidemia da peste que transformou seus semelhantes em vampiros débeis, notívagos que temem o alho e os espelhos que lhes revelam o próprio semblante doentio; são fracos individualmente, mas fatais quando atacam, desordenadamente, em massa (mais próximos dos zumbis de Romero que do poderoso conde de Stoker). Derradeiro bastião dos homens, imune à praga, Morgan incumbiu a si mesmo o dever de buscar e exterminar sistematicamente tantos desses monstros infectos quantos lhes estiverem ao alcance, limpar no que for possível a cidade dessas encarnações impuras.

Até seu terço final, a narrativa de Mortos que matam reproduz algo similar ao modelo de horror proposto por Carroll: Morgan é apresentado como personagem que exemplifica nossa repulsa aos vampiros. Entretanto, uma reviravolta impressionante começa a se delinear com a chegada de outra sobrevivente, Ruth (Franca Bettoia). Ela é membro de uma nova comunidade até aquele instante desconhecida por Morgan; seus integrantes são humanos infectados que, por meio do uso periódico de uma droga, conseguem inibir os sintomas mais graves da doença, embora não possam curá-la. O surgimento deste terceiro elemento, do coletivo dos impuros, daqueles que não são nem humanos plenamente “saudáveis” nem monstros, reconfigura os critérios valorativos até então estabelecidos e tece novo um contexto discursivo e narrativo no qual Morgan é o monstro, tal como diz Ruth em dado momento:

“Você não pode se unir a nós. Você é um monstro. […] Você é uma lenda na cidade. Andando de dia, e não à noite, deixando como rastro de sua existência corpos sem sangue. Muitas das pessoas que vocês matou ainda estavam vivas! Muitas delas eram entes queridos das pessoas do meu grupo.”

Esse revés expõe a mentira do expediente que Morgan levava a cabo quase como uma missão histórica: ao tentar exterminar os monstros, inadvertidamente massacrou o que restava de humano nos infectos, seu projeto se perverteu numa forma de barbarismo apesar de suas melhores intenções. Morgan, o monstro lendário, será, finalmente, perseguido e executado pelo grupo de Ruth. É notável que a posição intersticial desse novo coletivo formado por homens e mulheres impuros como os vampiros, mas aptos para a organização racional e resolutamente humanos em seus sentimentos, funciona quase como uma figuração alegórica do dictum aristotélico: “um homem incapaz de integrar-se numa comunidade, ou que seja autossuficiente a ponto de não ter necessidade de fazê-lo, não é parte de uma cidade por ser um animal selvagem ou um deus” (Política, 1253a). Em Mortos que matam, a comunidade política dos impuros emerge como única alternativa ao insulamento “selvagem” da massa de mortos-vivos (incapazes de constituir qualquer tipo de coletividade organizada) bem como à autossuficiência de Morgan, a “divindade” monstruosa que os conecta a uma humanidade pura anterior e cujo sangue pode fornecer os anticorpos para uma cura. Sua execução sumária, no novo contexto referencial que toma de assalto o filme, carrega um potente significado político: a “Lenda” que ele representa deve ser extirpada. Esse desfecho francamente iluminista em seus pressupostos, que toma partido da desmitologização radical da sociedade, assevera uma espécie de caráter desmistificador da ação política – não há qualquer concessão à crença falsamente messiânica num salvador lendário cujo sacrifício restitui a pureza originária anterior à Queda cataclísmica, no caso, a praga que precipitou a humanidade na condição decaída de mortos-vivos.

As duas revisões cinematográficas de Mortos que matamA última esperança da Terra (The Omega Man, 1971; de Boris Sagal) e Eu sou a lenda (I am Legend, 2007; de Francis Lawrence) – convergem precisamente na recusa dessa ousada reviravolta política que encerra também o romance de Richard Matheson que as inspirou. Em ambas as refilmagens, o protagonista – agora chamado Neville como no livro – é uma Lenda no sentido inverso àquele do original, não por ser o mito monstruoso que deve ser suplantado em benefício de uma sociedade nova, mas porque representa o vínculo com civilização anterior à catástrofe, sua morte assume um significado mítico fundacional que restaura a ordem social (o status quo ante) e expurga a praga; quanto aos infectos, não passam de monstros sem qualquer habilidade de organização. É evidente, portanto, que a adoção de um esquematismo mais convencional, facilmente redutível ao modelo de Carroll, acarreta a simplificação das nuances políticas e discursivas que o elemento de impureza próprio ao horror deveria suscitar – como resultado, as refilmagens acabam por não mais que reiterar um velho topos narrativo e ideológico.

Um detalhe importante que não pode passar sem comentário é a maneira como a comunidade dos impuros é representada em Mortos que matam: apresentados como um coletivo altamente disciplinado com homens armados vestidos de preto e calçando coturnos, remetem claramente à milícia dos Camisas Negras do fascismo. É uma escolha no mínimo curiosa, visto que tal referência parece contraditória do ponto de vista ideológico (aos impuros não interessa restaurar a ordem de um ethos nacional ou mesmo civilizacional, porque recusam ancorar sua sociedade num mito fundador que os conecte a uma matriz pura e essencial de qualquer tipo – do contrário fariam um pacto com Morgan, cuja imunidade à praga que corrompeu a humanidade o transformaria no líder ideal de um tal projeto politicamente essencialista como o fascismo). Esse paradoxo nos leva não só a recusar uma leitura fácil como também a tentar uma espécie de contraleitura: e se – seguindo aqui uma hipótese já aventada por Fredric Jameson – especularmos que a figuração distópica protofascista dessa comunidade dá testemunho antes da nossa própria inaptidão para imaginar uma sociedade radicalmente distinta e, até mesmo, utópica? Tal remissão paradoxal à imagem deveras familiar do fascismo funcionaria, se assim a compreendermos, mais como um enxerto ilustrativo, como uma hipótese ad hoc narrativa, que tenta resolver o impasse discursivo de representar uma forma de vida e de organização social inconcebíveis nos termos das categorias políticas disponíveis a nós. A crítica politicamente orientada tem como uma de suas funções articular tais lacunas ficcionais (e discursivas) que revelam algo sobre os limites reais que o fechamento ideológico de nossas concepções em geral impõem à imaginação artística em particular. Tem por função, enfim, apontar que o sacrifício ao final de Mortos que matam não é um gesto de purificação da comunidade, não é um retorno ao passado imaculado, não é uma demonstração de violência comunitária sádica, nem mesmo é o triunfo da vontade do povo que se nutre da ilusão que essencializa seu ethos; é, ao contrário, a promessa do que para nós permanece (ainda) uma inimaginável utopia impura.

Christofer Pallú e Fernando Costa

[Parte III]