Três filmes de Paula Negri com Marina Cananda

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I. Maria José, 2015.

Primeira direção da Paulinha Negri. Produção de estudantes descobrindo seus ofícios.

Em Maria José se esboçava a tensão cabal de atração e repulsão dentro dos planos, um movimento impreciso em busca de “algo” que não se encontra, algo que pode estar presente e é sugerido, mas nunca sentido. Algo chama os olhos da menina Maria, recônditos como o alvo de sua confusa busca, forçando-na a preencher um espaço e esvaziá-lo bruscamente. Algo menos vago seduz José, incapaz de lidar com a impérvia distância da menina que busca.

O trabalho ainda é equivoco, o estilo rudimentar, a arte viciosa… Enfim, um aprendizado. Ideias ousadas diluem-se em técnicas que não escapam dum possível condicionamento do meio estudantil no qual está inserido.

A tensão mencionada também transpira entre a encenação rígida e a moleza do casal de atores, entre suas faces e a luz que não encontra o trêmulo furor erótico que fortuitamente irrompe nos silêncios. Silêncios muito mais profundos que aqueles de seus vis contemporâneos ao esquivarem dos diálogos sinceros, pois é, afinal, um filme de desencontro.

No reconforto de um beijo no pescoço seguido de um abraço a câmera parece relaxar, para então retornar abruptamente ao vazio num sorriso não correspondido, numa gravidade súbita e assustadora, numa distância redescoberta quando não há mais lugar para ela. Por este momento, o olhar perdido de José é sustentado.

E o filme não é apenas um momento, não é a busca de um efeito pulando as árduas etapas da construção. Porém, as minúcias dessa construção serão descobertas depois. Uma consequência natural da entrega às árduas etapas anteriores.

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II. Flores, 2015.

A coadjuvante Marina vira a estrela, força motora do cinema. Uma força natural, indomável, que a câmera persegue, observa, enquadra, procura um controle do qual desiste quando descobre na própria jornada seu sentido de ser. Finalmente, uma produção livre. Pois a descoberta é o próprio sentido do ofício.

Ouvi um pastor dizer um dia: “Tudo do que preciso eu já tenho à mão!” E Flores é um desses raros filmes que desbravam com as mãos, vê com elas, cria com elas. Manifesta e manipula a matéria bruta. Depois pode digeri-la, num carreiro rumo a intoxicação romântica. São flores de formas variadas que num ponto, digitalmente sangrando, viram cor pura, abstrata e aberrante, que vão retomando seu volume, sua textura e seu corpo no contato com a estrela, que em sua flana se aliena da cidade, posta num espaço fechado onde consome o que extraiu dos muros e calçadas, dum ambiente que ela relega à margem, mas segue existindo como um lasso eco na trilha sonora.

O espaço fechado, onde a Marina finalmente descansa, é encontrado e é criado, é fruto de uma busca e de uma escolha, da abertura total unida a um tácito rigor. Simultaneamente próxima e estranha à realidade que a cerca, o envolvimento com a menina no segundo filme não distancia, liberta.

As flores transfiguram, a vizinhança transfigura, Marina transfigura… Ela não é mais parte dum retrato da juventude universitária, uma personagem, uma atriz, pois agora pisa no plano misterioso que está muito além da arena, numa trilha muito parecida com a que Morrissey e Dallessandro percorreram de Flesh em diante. É uma força que regressa à ficção e transforma outros planos no último filme.

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III. Encontro, 2016.

Dos três herméticos títulos, o melhor. Das premissas de uma linha, a mais direta, reduzida a uma palavra. Produção de bando, de amigos abertos à experiência e aos desafios do real, pois pretende mergulhar em mistérios latentes, em espaços reais, quase num tempo real.

Flores, contraponto austero à clausura composicional de Maria José. Se dissipam as linhas predefinidas, os sistemas sufocantes e com eles todas as farsas que a indústria aidsvisual confunde com construção. O desprendimento que foi laboriosamente aprendido inflama o coração da produção, cria um pulso natural, um centro de gravidade que impede as arbitrariedades. O plano e o acidente trazido pelo destino convergem harmonicamente. Nesta modesta refilmagem de Notting Hill, redescobrimos a fluidez que o cinemão abandonou, como abandonou Hugh Grant e Julia Roberts, entre diversos nomes duma arte que a grande indústria abjura e talvez até esqueça que um dia existiu.

Paulinha sabia que era preciso ir muito além dos silêncios aflitivos de Maria José, trair seu relaxamento afetado, e partindo dele, buscar o relaxamento verdadeiro, desbravar uma direção e uma tensão justa. Era preciso atravessar os olhares, prender-se à suas convergências, às suas debandadas, enfim, flanar a noite como o reativo herói João, um bundão de marca maior. Aqui, a força indomável desperta o entusiasmo num jovem preso a um meio fechado, um mundo mediado por vidros e telas, por imagens que seduzem mas não são concretas.

Fazemos o caminho inverso de Maria José, aquele filme de desencontro. No filme de encontro, a fleuma entra em choque com o desejo, a evasão é frustrada e os olhares quando cruzam, copulam. Na penumbra pontuada pelo brilho de olhos tímidos, clareia uma direção, a inquietude da aproximação, dum possível contato.

É uma agressão erótica à inércia de João, que recusa superar a acídia, correndo do desejo que o chama aos berros, da atração que ele resiste e dispersa, forçando uma fuga que o leva ao inferno, onde confronta o medo de se aproximar do outro. E João, pela primeira vez, nos deixa totalmente perdidos no escuro, mergulha nele, vomita seu encosto. Quando a noite o cospe de volta, livrando o herói do inferno, ele se vê sinucado e a tensão da distância é palpável. O mergulho violento na noite foi incitado por Ana e só ela pode provocar o despertar. É ela quem move o destino, comanda a madrugada, atrai a alma perdida.

Dali em diante, tudo poderia dar errado, aqueles caminhos nunca mais serem cruzados. Por um momento, numa bela sequência de perseguição, saímos do teen movie direto para o thriller, mas a musa outra vez aparece e nos atira às sombras, às incertezas, às amplas possibilidades dum teen movie, dum rito de passagem. Na cena derradeira, de maior confluência, do casal andando lado a lado, rumo ao desejo mútuo e manifesto, é ela quem dá o empurrão final. Entra New Order.

I feel fine and I feel good / I’m feeling like I never should / Whenever I get this way / I just don’t know what to say / Why can’t we be ourselves like we were yesterday

Christofer Pallu

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